domingo, 11 de abril de 2010

Caldeirão e Pau de Colher

A história das lutas populares é indestrutível 

Por Rogério Morais  

Setecentos mortos, bombardeio aéreo com três aviões do Ministério da Guerra, incêndios e destruição de casas, espancamento de crianças, mulheres e velhos, saques; e ainda, luta corporal de populares usando facões, ferrões e cacetes contra soldados da polícia bem protegidos; mulheres enfrentando homens do Exército armados de fuzis, homens furando cerco de rajada de metralhadoras, execução de prisioneiros, fuzilamento, são mais 300 corpos de trabalhadores rurais estendidos, numa das maiores resistências das populações do campo nordestino contra os proprietários rurais latifundiários. Donos das terras, igreja, polícia e governo unidos para destruir a vontade do povo de trabalhar, criar seus filhos e vencer com liberdade.
Estamos falando das comunidades de Caldeirão e Pau de Colher, nos anos de 1930, envolvendo sertanejos principalmente do Ceará, Piauí, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Bahia. O palco da luta e da resistência do povo trabalhador, duas regiões nordestinas: Serra do Araripe, Ceará, e médio São Francisco, Bahia. Duas áreas que atraíram milhares de homens — famílias — cansados da exploração, da miséria e da injustiça do latifúndio e do Estado. Foram para lá com a certeza e a consciência de dias melhores, sem saber que a classe dominante agiria sem dó ou piedade, usando todas as suas forças, tentando apagar para sempre o que seria uma sociedade justa - o início do desenvolvimento social da região e a libertação dos trabalhadores.

No museu histórico do Ceará, no centro de Fortaleza, prédio que até a década de 1970 abrigou a Assembléia Legislativa do Estado, existem apenas três peças que lembram o povo do Caldeirão: A bandeira da comunidade, três reproduções fotográficas publicadas em jornal da época e uma espingarda aparentemente não muito manuseada, ao lado de um machado. Esses objetos ocupam a sala em memória a Padre Cícero Romão Batista — fundador da cidade de Juazeiro do Norte, Ceará — onde está a batina do religioso e outras valiosas lembranças de suas ações na região do Cariri.

Sumiu... 

Uma citação transcrita no livro "Cultura Brasileira", do economista e historiador cearense Aristides Braga, colhida do museu (ver boxe), não é mais encontrada. Um funcionário afirma que não existe. É o trecho do depoimento da sobrevivente do Caldeirão, Marina Gurgel. É tudo que existe de mais de 10 anos do esforço de um povo para produzir na terra seca independente dos caprichos e humilhação dos patrões, e, pelo menos mais três de acirrada luta para resistir a repressão da classe dominante que não permitia aquele desafio. A bandeira, intocada em um armário com vidro tem manchas de sangue, provando que os ideais eram fortes, e resistiu o máximo que pode, com honra, o sangue e o suor daquela gente.

No museu também não se é permitido fotografar, segundo a administradora — somente filmagem pagando-se uma taxa de R$ 2,00 — pois "o flash danifica as peças", argumenta. Em todo caso, e todos os detalhes, percebe-se a falta de vontade ou desinformação em relembrar um acontecimento dos mais marcantes da história regional. "O maior espetáculo social que o Ceará ofereceu para o Brasil", diz o jornalista Hidelbrando Espínola, repórter do então jornal "Correio do Ceará", na época do movimento, que entrevistou José Lourenço, o líder do Caldeirão.

O Jornal "Correio do Ceará", dos Diários Associados, o mais atuante durante aquele período, também fechou suas portas e com o seu fim o valioso arquivo fotográfico — inclusive registros do Caldeirão e das pessoas envolvidas no seu extermínio — foram para a calçada do prédio quando o grupo vendeu o patrimônio, em Fortaleza. Livraram-se da guarda de registros que estimulam, em qualquer época, a resistência do povo. Outros documentos importantes (relatórios e jornais da época) no arquivo público ou biblioteca central do Estado, conforme historiadores, "sumiram" não deixando rastro dos anos em que a classe dominante — latifundiários — mais temeu a queda do seu prestígio, numa tentativa de apagar da memória das novas gerações a história verdadeira da luta do oprimido contra o opressor.

"O beato organizou tudo... era eficiente, despertou a comunidade e foi perseguido pelo latifúndio...". Aos 87 anos de idade, o advogado e jornalista Hidelbrando Espínola, em sua casa, no bairro da Aldeota, mantendo nada menos do que 30 mil livros, distribuídos, em cada compartimento (sala, quartos e serviço) por área (sociologia, movimentos populares brasileiros, golpe de 64, filosofia, marxismo, Padre Cícero, Lampião, Canudos e Caldeirão, etc.) lembra com objetividade a experiência socialilizante encabeçada pelo beato.

José Lourenço, o Beato, como era conhecido, "foi fabuloso... fabricou máquinas, tratou a terra, plantou e colheu grãos, frutas e verduras" comenta Hidelbrando. "Todos lá tinham a sua função e a disciplina era a regra para tudo, uma organização social que não tinha igual", lembra, e acrescenta: "A verdade é o seguinte: os proprietários de terra estavam preocupados com o desenvolvimento da comunidade... eles estavam perdendo mão-de-obra porque os trabalhadores seguiam para o sítio".


O jornalista esteve como repórter no Caldeirão dias após o massacre que uniu a Polícia Militar do Ceará e o Exército. Já não era mais o símbolo da prosperidade da região. Segundo ele, José Lourenço foi autorizado a voltar ao local totalmente devastagrandes instantes do movimento de massa por uma sociedade melhor contra a exploração secular das classes dominantes no sertão nordestino". Destaca-se na apresentação do livro "De Caldeirão a Pau de Colher: A guerra dos caceteiros", do geólogo e pesquisador baiano Ruy Bruno Bacelar de Oliveira. Para o Estado elitista, que tem instrumentos e paga seus contadores de história tentando apagar da memória popular todo o vestígio desses movimentos, a ação foi fruto do "fanatismo, misticismo e religiosidade agressiva dos sertanejos".

"As elites preocupavam-se com o fato do Caldeirão vir repetir Canudos ou Contestado. Os fazendeiros do Cariri não encontravam braços para o trabalho nas fazendas. Havia um êxodo em direção ao Caldeirão", registra Ruy Bruno Barcelar no seu livro. As duas comunidades — na Bahia e no Ceará — tinham o mesmo objetivo, a mesma filosofia social de vida e de trabalho. Ambas surgiram na mesma época (veja matéria). As duas foram exterminadas numa ação do aparato do grande latifúndio, ou seja, polícia, igreja, vigarista político, imprensa e exército: "a chacina de Pau de Colher foi o mais brutal quadro da tragédia vivida no sertão baiano". Na serra houve execução sumária de prisioneiros, registra o livro.

"O Caldeirão, Chapadas do Araripe e Pau de Colher representam os três últimos grandes gritos de liberdade da gente do Nordeste contra latifúndios e burguesia que ainda hoje continuam no poder", diz Bacelar. Assim como Canudos, em 1887/l897, Caldeirão e Pau-de-Colher "devem ser vistos pelo lado sócio-econômico que também tinha sua força religiosa", opina o professor Aristides Braga. As elites e o governo quiseram contar a história desses movimentos sociais escondendo o seu lado objetivo, ou seja, a consciência de classe dos trabalhadores destituídos da terra, vítimas do sistema, e contrários a uma organização social arcaica e ineficiente, erguida nos moldes feudais.

Prosperidade

Em um terreno seco do solo cearense, doado pelo Padre Cícero, José Lourenço fundou uma produtiva comunidade, que, aliás, vinha alimentando os Salesianos (arroz, farinha, feijão, carne, rapadura, frutas e legumes e outros gêneros para os frades) antes da invasão, pois o Beato acreditava que assim afastaria a ameaça de perder o local. Doze casas de moradia, uma de engenho, dois açudes, um cercado com quatro mil e 12 braças, com mais de um mil tarefas de algodão, quatro tarefas de cana-de-açúcar, 10 cancelões de madeira, e centenas de árvores frutíferas. Além do mais, centenas de animais, vacas, cavalos, jumentos, porcos, galinhas, marrecos, patos e outros. Na época da invasão, os armazéns da propriedade estavam lotados de algodão, milho, feijão, arroz, rapadura e farinhas. Inúmeras máquinas e outros objetos importados que serviam aos trabalhadores. Este era o Sítio Caldeirão, em 1938.

A vez de Pau de Colher

Com a destruição, Pau de Colher se tornou a irmandade mais importante depois do Caldeirão. No princípio, início dos anos de 1930, os beatos não tinham interesse no desenvolvimento agrícola da região, como no Caldeirão. Pau de Colher era o ponto de recrutamento, treinamento e doutrinamento dos trabalhadores que seguiam para Caldeirão, no Ceará. Ali aprendiam a conviver em grupo, adaptando-se às normas rígidas da irmandade. Depois da morte de Padre Cícero, as pessoas começaram a se mudar para Pau de Colher, atraídos pela água e pelos ensinamentos dos beatos. Pau de Colher passou a ser um lugar onde se reuniam necessitados, flagelados e pequenos posseiros. O lugar começou a barrar a ida de nordestinos para São Paulo, conta o livro do geólogo Ruy Bacelar. Chegou a vez de acabar com Pau de Colher. Temendo uma nova sociedade tipo Canudos e apoiado pela imprensa e os políticos, o governo da Bahia, pede ajuda aos estados do Ceará e Pernambuco para destruir a comunidade. Na época, o próprio Presidente da República, através do seu Ministro da Justiça, Francisco Campos, intimou todos os interventores a extinguir a ferro e fogo todos os movimentos revolucionários e também o cangaço, na pessoa do seu chefe, Lampião. Conforme o livro "De Caldeirão a Pau de Colher", Getúlio Vargas usou a expressão, "acabem com eles a todo preço senão serão destituídos".(...)

Para Ruy Bacelar, os três movimentos (Caldeirão, Serra do Araripe e Pau de Colher) são formas de lutas contra o tipo de estrutura social existente, onde famílias poderosas controlam os meios de produção, são donas dos recursos naturais e criam uma monstruosa organização social que, ao longo da história, sufocaram todos os gritos de liberdade das massas despossuídas. "O fanatismo que os animava era revolucionário e alimentava a esperança de mudanças para um mundo melhor. O ódio contra as classes dominantes, o entusiasmo na vida comunitária, levaram todos eles a deflagrarem um fluxo de atividade econômica, usando meios de produção revolucionários para a época", explica em seu livro.

 Beato José Lourenço e o jornalista Hidelbrando Espínola 

O beato pede a Padre Cícero

José Lourenço, paraibano (tem relato que seria pernambucano), depois de ser preso e solto por pregar em praça pública, recebeu de Padre Cícero a terra nua, sem nenhuma benfeitoria, no pé da serra. Com pouco tempo, já havia mais de 400 casas, erguida uma capela e uma população de três mil pessoas. Eram trabalhadores de vários estados nordestinos, que passaram a produzir, educar seus filhos e alimenta-los.

O Caldeirão ficou auto-suficiente. Sua fama crescia e já influenciava outras cidades, porque lá o progresso atingia também a área de artesanato, confecção de redes, roupas, calçados, etc. Todas as ferramentas necessárias para o trabalho eram feitas na própria comunidade. Os produtos excedentes eram vendidos em Juazeiro e no Crato. "Ninguém se considerava dono de alguma coisa. Os meios de produção eram coletivos", relatam os remanescentes.

Maria de Maio nasceu no Caldeirão, conta: "Eu vivia lá. Ia gente que o Padrim Cícero sempre mandava. Gente pra trabalhar lá. Quando chegava em Juazeiro umas pessoas, que não tinha trabalho, ia trabalhar lá". E foi assim que a comunidade criou fama no Nordeste, cresceu, recebendo gente de todos municípios. O ódio dos fazendeiros era grande, pois tinham que solicitar trabalhadores a José Lourenço. O comércio de Juazeiro estava declinando. As populações rurais de todo o Nordeste, nos anos de 1920/30, eram as que mais sofriam com a crise econômica que reinava no mundo.

A igreja e os latifúndios — dominantes — já não se entendiam e o povo trabalhador tomou a iniciativa de guiar os seus próprios destinos. Portanto, experiências como Caldeirão e Pau de Colher minavam os sertões. Vários outras iniciativas floresciam em outros estados como no Piauí, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Paraíba. Os beatos, como Severino Tavares, um dos mais influentes, depois de José Lourenço, percorriam as cidades pregando e recrutando adeptos. Reunia multidões nas praças. O Cariri já concentrava muita gente em torno de Padre Cícero. As comunidades foram se formando com o mesmo objetivo e mantendo estreito relacionamento através da comunicação dos beatos.

A destruição

Os salesianos, após a morte de Padre Cícero, requerem na Justiça a posse do Sítio Caldeirão, alegando herança feita por ele. Alguns historiadores registram que os Salesianos não gostavam do Padre Cícero. No entanto, estava decretado o fim da experiência. Os salesianos conseguem na Justiça, em Fortaleza, a desocupação da área. Antes de qualquer ação, os órgãos de segurança mandam agente para obter informações. Temiam que na comunidade houvesse muitas armas. Segundo Hidelbrando Espínola, a comunidade já esta infiltrada de informantes, e havia "uma pessoa dos órgãos de segurança que atuava como líder".

Os registros dão conta de que a ordem de destruição do Caldeirão partiu do Presidente Vargas. A ação foi coordenada pela Secretaria de Segurança Pública do Estado e pela Região Militar. No comando o Chefe de Polícia, Capitão Cordeiro Neto, e o Delegado do Dops, Tenente do Exército José Góes de Campos Barros. "Eles subiram a colina", lembra o jornalista. A força militar chega ao sítio e os moradores assistem a destruição. Casas são incendiadas e não a tempo de levar nem os pertencer pessoais. Alguns beatos transmudaram-se e olhavam com muito ódio o capitão Bezerra e seu filho, à frente das ordens. Mulheres grávidas ou ainda amamentando crianças choraram e arrumavam em carros de bois os poucos pertences, narra.

"MARINA GURGEL
"Eu num sei o que foi de fizeram esta perseguição, porque agente num tava matando, num tava roubando, num tava fazendo mal. Tava trabalhando e rezando. Ai, por isso fomos perseguido e sentenciado à morte, ninguém sabe, quem é Deus, né! O que tenho a dizer é isto... tava no Caldeirão cantando e rezando e tão feliz, trabalhando e comendo. Sem ninguém precisar pedir nada pra ninguém, porque tudo tinha, nada faltava, tudo era comum. O que era de um era de todos e ai quando dava fé uma perseguição". 
Do Livro Cultura Brasileira, de José  

Na serra

Dias depois, acontece o segundo bombardeio aéreo sobre civis na história do Brasil. (O primeiro foi em 1912, Contestado). As tropas já estavam em Juazeiro. À frente, o mesmo comando sob as ordens do Governo Federal. No relato do jornalista e escritor Jader de Carvalho, morreram cerca de mil pessoas, entre velhos, mulheres e crianças. A imprensa, com a censura do DIP — Departamento de Imprensa e Propaganda — do Governo Vargas, quase nada publicou. Houve execução sumária de prisioneiros. Mais de cem foram executados por um cabra que "tinha um enorme chapéu à cabeça e um punhal à mão: Ele sangrava as pessoas, uma a uma, indagando, antes em tom zombeteiro: - Então você não sabe quem matou o capitão Bezerra, hein?", segundo Jader. Hidelbrando lembra que, dias depois, ainda viam-se as chamas do bombardeio.

Facão e cacete

Em Pau-de-Colher, as mulheres lutaram desesperadamente. Saiam das trincheiras, seguidas dos filhos, em direção aos soldados, com cacete na mão. Eram facilmente cortadas ao meio pelos tiros de metralhadoras. Um grupo delas avançou sobre um destacamento que tinha tomado uma cacimba, e todas foram metralhadas. Conforme relato de Optado Gueiros, Tenente que comandou o atraque, de acordo com a imprensa baiana, os corpos apodreciam no chão. Foram vários dias de luta. O chão estava tomado de sangue e pedaços de órgãos humanos em toda parte. Eram mais de 400 corpos. Os soldados evitavam a luta corporal e venciam facilmente a batalha com o uso do fogo das metralhadoras.

Açude: A Nova Democracia

3 comentários:

  1. Ola, tudo bem! Faço parte de uma quadrilha junina chamada Zé Testinha de fortaleza-ce, que resgata a cultura do cangaço a 34 anos, dentro do nosso grupo tivemos palestra sobre o cangaço e uma gincana em cima do que foi dito, uma das tarefas da gincana é de mostrar um livro de Frederico Bezerra Maciel - Lampião, seu tempo e seu reinado, onde mostre que lampião era sanfoneiro e dançava quadrilha, mais nao encontro e queria saber se você pode me ajudar a encontrar ou ate mesmo onde posso comprar este livro! um grande abraço e espero resposta. meu email é iris.linda85@hotmail.com

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  2. felipe ribeiro ramos21 de junho de 2010 às 21:16

    gostei muito do seu texto, mas se não for muito incomôdo, o autor pode me dar algumas referências para a elaboração deste artigo, pois estou fazendo um trabalho sobre a guerra do pau de colher, e estou sem muitas referencias.
    se puder fazer isso para mim, agradeço
    meu email:feliper.ramos@hotmail.com

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  3. Sr Felipe O texto é do Rogério Morais, copiado da fonte indicada no final deste. Nós não conhecemos o mesmo apenas encontramos e publicamos por considerar o material de extremo relevancia. Tente contato com os idealizadores do portal "A Nova Dmocracia". http://www.anovademocracia.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=1404&Itemid=105

    Abraços
    Kiko Monteiro

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