sábado, 4 de novembro de 2023

"O Estado de São Paulo" - 7 de março de 1996

Quando Dadá conversou com Rosemberg Cariry

Por Helena Salem (Transcrição de Antonio Correia Sobrinho)

O status inconteste de Dadá, de verdadeira cangaceira, associado à sua forte ascensão e influência sobre o esposo Corisco, faz desta mulher, penso eu, mais do que imaginamos, mais do que uma simples cangaceira. Dadá foi a líder intelectual do grupo de bandoleiros comandado pelo seu marido. 
 
Condição esta que ela, nas inúmeras entrevistas dadas à imprensa ao longo de seus anos de vida pós-cangaço, conseguiu embora deixasse aqui e ali transparecer, não tornar claro esta sua real posição dentro do grupo, o que vejo como amplamente justificável, uma vez que todo cangaceiro sobrevivente usou de mecanismos de defesa, como, não dizer completamente de seus atos delituosos, para mitigar as suas responsabilidades. 
 
No caso de Dadá, também, quem sabe, para não tirar do seu amado o holofote maior da história.  Antonio Correia
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Sérgia da Silva Chagas, a Dadá, nasceu em 25 de abril de 1914, no interior de Pernambuco, e morreu em 7 de fevereiro de 1994, de câncer. O filho Silvio conta que, na noite de sua morte, chamou uma psicóloga do hospital em que estava internada em Salvador, pediu um batom e um pente para se arrumar “bem bonita”, porque tinha sido convidada para ir a uma festa com Jesus e não podia chegar feia”. Uma hora depois, morreu.
 
Vaidosa, corajosa, Dadá – que teve uma perna amputada em consequência dos ferimentos à bala no momento de sua prisão (ela saiu atirando com as duas mãos) junto a Corisco (ele morreu na mesma noite), em 1940 – foi depois anistiada e se casou de novo, com o empreiteiro Alcides chaves. Refez a vida, porém, não teve mais filhos. E continuou sendo, sempre, a mulher forte que se impôs frente a Corisco, conquistou o respeito e a amizade de Lampião, a admiração de todo o cangaço e até de José Rufino, o matador de cangaceiros, para quem ela era “brava como um homem”. 
 
Elogio maior, naquele ambiente tão machista, era quase impossível.
 
Entre 1989 e 1990, o diretor Rosemberg Cariri gravou em vídeo uma longa entrevista com Dadá. Seguem alguns trechos dessa entrevista inédita, na qual a ex-cangaceira fala, entre outros pontos, de seu amor por Corisco, da Coluna Prestes e de como era a vida das mulheres no cangaço.
 
Comunismo: “ouvia falar muito. De noite ficava todo mundo lá sentado e Lampião dizia: ‘Rapaz, se eu pudesse sair disso, se viesse aí um doido, uma revolução que abatesse esses miseráveis todos. Nós passava pra frente deles. Ah! Luiz Carlos Prestes. 
 
Nós encontrava com este homem, nós abre o mundo e vamos embora’. Eles falavam muito nisso, mas nunca apareceu nenhum. 
 
Quando aparecia, era pra matar. Mataram, mataram, aleijaram, acabou, pronto. Agora, tem muito cangaceiro aí bem de vida, os que se entregaram. São funcionários, os filhos são formados, vivem muito bem.”
 
Mulheres: “Era uma convivência maravilhosa. Todo mundo tinha seu marido. Um amor danado. Uma costurava, outra ajeitava um vestidinho, uma coisa. Uma vida bacana. Com Lampião ali, ninguém dava um nome, ninguém se "inxeria" com coisa nenhuma. Agora, se ela saísse fora da linha, o chumbo comia, matavam, como aconteceu com Cristina e Lídia.”
 
 
Maria Bonita (mulher de Lampião)
: “Era terrível, orgulhosa, metida. Era assim pequenina, toda redondinha, bem-feitinhas as pernas, mas pisava assim. Quer ver? Olhe no retrato, ela tem os pés pra frente. 
 
Orgulhosa, metida à besta, barulhenta. Só vivia com encrenca com um e com outro. Mas ninguém ligava, não. Era assim, bonitinha, alvinha, agora bacana era só ela, e queria ser mais.”
 
A relação com Corisco: “Eu tinha uma boa vida com Corisco. Era um homem bom. Nunca chegou um dia de falar comigo aborrecido. Quando ele queria dizer ‘não’, dia ‘não sei, você é que sabe’. Mas se ele dissesse ‘faça’, era o ‘sim’. Eu falava alto, eu xingava, vá pros inferno. 
 
Aí ele ficava com aquilo: ‘Fale baixo, num grita. Dadá, mulher pra ser uma mulher completa tem de ter modo até no pisar’ (...) Ele ficava dando risada, virava a cara assim pra num dar ousadia. E dizia: ‘Uma mulher é como uma flor, se a pessoa encosta nela, machuca.’ Ele dizia tanta coisa bonita pra mim, pra ver se me conformava. Mas eu era malcriada com ele.”
 
A vida no cangaço: “As mulheres não cozinhavam. Só se ela quisesse. Ela lavava tudo, botava tempero e entregava para eles cozinharem. Quando tava pronto, tava pronto. Aí vinha Lampião e eu dividir, porque Lampião tinha o povo dele e eu o meu. Maria não ia pegar em nada disso. Era bacana. Cada dia um cozinhava, outro lavava a panela, negócio tudo organizado. Não tinha de ‘não faço’. 
 
Chamava, era seu dia, tinha de fazer. Tudo limpinho, ajeitado, acabava de comer a gente dividia, mas mulher não ia para a beira do fogo. (...) Os cangaceiros eram muito amorosos, tinham tato carinho que eram capaz até de se esquecer das armas. Como teve muitos que morreram num descuido, entretido lá com mulher.”
 
Dadá, Corisco e Benjamim
 
A morte de Lampião: “Corisco ficou louco. Ele não era de chorar nem de falar, ficava calado. Mas ele parecia um maluco. Eu disse ‘deixa pra lá, Corisco’, mas ele falava ‘eu vingo’. Era quinta-feira e ele disse: ‘Se fosse os homens que tivessem morrido, não era nada demais, porque nós vivemo esperando isso. Mas uma mulher não se mata. Porque nem cem cabeças paga a de Maria.’ Aí foi quando ele fez aquele salseiro; eu quase nem consigo contar isso.”

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

O cangaço em Sergipe

A Pia das Panelas

*Por Eduardo Marcelo Silva Rocha
 

 



Sergipe foi um dos locais mais destacados na metade final da história do cangaço lampiônico. Uma vez que nessas paragens o valente de Vila Bela encontrou pouso e proteção de destacados coronéis da região do São Francisco. Ele pôde se estabelecer, recrutando diversos do povo para encorpar suas hostes.
 

Lampião ao se radicar na região de SE/BA/AL, alterou o funcionamento de seu grupo, que foi dividido em vários (sub) grupos menores, com áreas territoriais de atuação definida, em um processo de delegação de funções, nomeando chefes de bando em diversas localidades, sendo o mais famoso destes, o cangaceiro Zé Baiano, que atuou na região agreste do Estado, tomando Frei Paulo como uma dessas referências.
Essa tranquilidade, somada ao consórcio com “coronéis” da região, permitiu-lhe diminuir seu ritmo de ação, transformando-se em uma espécie de gestor dos seus delegados: Zé Sereno, Labareda, etc. É óbvio que existiam outros aspectos, como o cansaço daquela vida dura, e mesmo, a admissão de mulheres ao bando.
 

Enfim, Lampião construíra em Sergipe um sólido “modelo de negócio” que lhe deu a oportunidade de desfrutar momentos de tranquilidade como nunca dantes. Depoimentos de pessoas da época dão conta de visitas a cidades, como Propriá e Laranjeiras, em busca de tratamento médico, por exemplo. Além de incursões como a de Capela, onde Lampião chegara a assistir ao filme “Anjo da rua” (Street angel), estrelado por Janet Gaynor.
 

O fato é que a região era, no geral, um bom coito para Lampião e seu bando, como vimos acima. Mas não apenas isso. Em um dos locais de pouso estabelecido na região catingueira do nosso Estado, Lampião estabeleceu uma espécie de quartel, onde podia reunir-se e tratar de outros assuntos diferentes da rotina de lutas.
 

Trata-se da Pia das Panelas, no atual município de Poço Redondo. Escondido por grandes propriedades, o citado coito era tão bem localizado no que tange à segurança, que os relatos dão conta de que nunca houve ataque por partes das volantes ao referido local.
 

Diante dos fatos é possível inferir que em um local seguro deste, não era incomum a presença de coiteiros responsáveis pelo fornecimento de víveres e demais produtos. Em conversas com Manoel Belarmino, morador da região e pesquisador independente, consideramos a possibilidade, de devido à segurança do coito, os cangaceiros receberem visitantes, acompanhados de crianças, ao menos em companhia de coiteiros.
 

O nome “pia” não era fantasia, consistindo em uma espécie de lajedo de pedra, seus buracos eram capazes de armazenar água por muito mais tempo que os riachos que secam logo após o inverno. No caso da Pia das Panelas, existem vários buracos onde se armazena água, tanto que os moradores da região, hoje, enchem os buracos de pedras, como forma de prevenção a acidentes com animais que ainda buscam o refúgio para a sede naquele antigo coito.
 

Além disso, o local consiste também em uma pequena elevação que somada às características da vegetação mais baixa, fornecia vantagem estratégica aos que ali repousam.
 

Alguns acontecimentos convergem para a ideia de que ali se tratavam assuntos de ordem “administrativa” do bando. Nesse sentido, exemplo maior é a morte de Lídia – dizem ter sido a mais bela – companheira do cangaceiro Zé Baiano – ao que se sabe, no mesmo dia da morte do Padre Cícero.
 

Após ter sido delatada pelo cangaceiro Coqueiro, que a teria visto deitar com o cangaceiro Bem Te Vi, Lídia fora arrastada para o famoso umbuzeiro que, ainda existe, no entorno do lajedo, onde esperaria amarrada pela morte a pauladas na manhã seguinte.
 



 

"Coqueiro", não se salvaria vivo, pois a delação era uma forma de traição, mesmo aquela, tão específica. Bem Te Vi, o conquistador, este salvou-se da morte, seja por proteção ou por haver fugido assim que soube do intento de Coqueiro – pois há quem defenda as duas versões.
                  

Existe alguma divergência sobre como se deram os fatos com o conquistador, mas seja como foi, sabe-se que em algum momento ele fugiu, livrando-se de qualquer ato de violência física. O conquistador não sofreu nada.
 

Mas não foi somente esse assunto que terminou em morte naquele local: ali ainda morreram outras pessoas sob o manto das decisões gerenciais do cangaço. Uma, foi Rosinha, que após a morte do cangaceiro Mariano, viúva, declarou querer sair do cangaço e, a mando de Lampião, foi resgatada da casa dos pais e morta próximo ao Riacho do Quatarvo - imediações do coito.
 

Outro foi o sertanejo Zé Vaqueiro, que encontrou o cangaceiro Novo Tempo, que se arrastara ferido até a Fazenda Paus Pretos (de propriedade do Coronel Antônio Caixeiro, pai do Interventor Eronides de Carvalho, local onde fica a Pia das Panelas).
 

Sabendo do tiroteio que acontecera dias antes, o vaqueiro decidiu executar o cangaceiro, que conhecia muito bem, para ficar com os seus bens, afinal, o fogo da lajinha ocorreu em local diverso ao da Pia das Panelas, onde estavam eles, naquele momento.
 

O plano do vaqueiro deu errado, o cangaceiro não somente sobreviveu ao disparo feito por Zé Vaqueiro, como conseguiu fugir. Dias depois, Novo Tempo já recuperado e com o bando, pegaram Zé Vaqueiro e o executaram às margens do riacho, queimado, após o seviciarem até sua exaustão.
 

Outra morte registrada no local, foi a de Preta de Maria das Virgens, que teve a cabeça esmagada pelo namorado Zé Paulo, que não queria assumir a responsabilidade da gravidez da moça.
 

Os cinco casos relatados têm a traição em diversas perspectivas como ponto comum. Coqueiro, Lídia e Zé Vaqueiro morrem porque traem. Rosinha morre pelo medo que a sua “deserção” causa, dada a possibilidade de traição que rondaria sua reintegração à vida normal, sendo ela conhecedora de coitos e coiteiros. E Preta de Maria das Virgens morre à traição, esta encetada pelo próprio namorado, pai do filho que esperava em seu ventre.
 

É característica da traição marcar a terra com sangue.
 

Sobre cemitérios, conta-se que o local que circunda a Pia das Panelas era antes um Campo Santo/Cemitério indígena. O local sob o Umbuzeiro onde supõe-se estar enterrado o corpo de Lídia de Zé Baiano é recoberto por pedras, que lhe facilitam identificá-lo e o fizeram famoso.
 

Mas sob um olhar mais atento, é possível observar que existem ainda muitas formações de pedras que sugerem ser demarcadoras de local de enterramentos humanos. É fato que, o local já foi remexido para exploração agrícola e, certamente, muitos vestígios arqueológicos já se perderam.
Por outro lado, certamente por questões culturais, alguns espaços como o entorno próximo da Pia e o umbuzeiro com o pretenso túmulo de Lídia ainda resistem.

EPÍLOGO

Ao visitarmos locais como esse, de sofrimento e dor – que representam histórias com muito sangue, ao menos para quem crê em vida além da vida – devemos considerar o peso que esses eventos carregam, nesses lugares, de energias ligadas as emoções de quem viveu tais situações. Se não quisermos pensar em energias (se está cético, se pergunte sobre o que se capta do corpo humano em um eletroencefalograma, por exemplo) pensemos no seguinte: quem gosta de reviver momentos ruins? Ou de ouvir pessoas recontando nossas péssimas experiências?

 

Longe de querer limitar ou ser contra as visitações aos sítios históricos, mas sim deixar aqui uma reflexão sobre como nos portamos nesses locais e como, respeitosamente, devemos nos portar neles.
Por fim, o local da Pia das Panelas, além de um sítio de interesse histórico, possivelmente, também se trata de um sítio de interesse arqueológico – cemitério indígena, a  despeito de já haver sido bem modificado pela ação da atividade agropecuária nas últimas As décadas. Muitas das pedras, se foram usadas para demarcar sepultamentos, hoje certamente já estão fora do seu local de origem.
 

Mas ainda há um pequeno espaço central – exatamente onde fica o lajedo da Pia das Panelas – preservado, inclusive em seu entorno próximo, assim como o umbuzeiro onde se supõe estar Lídia enterrada, onde encontramos um pequeno ajuntamento de pedras, em padrão que vemos em covas rasas.
 

Agora é a vez do IPHAN. 

 

* É tenente coronel da PM/SE e membro da Academia Brasileira de Letras e Artes do cangaço. (eduardomarcelosilvarocha@yahoo.com.br)