quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Feitosa e Pereira ao mesmo tempo

O cangaceiro Zé Bizarria

Por Valdir José Nogueira

“Em Belmonte choveu bala
Meu São José, quem diria!
Mataram o coronel Gonzaga
E balearam Zé Bizarria!”   
        
       
No seu conceituadíssimo blog “Estórias e História”, o pesquisador e historiador Heitor Feitosa Macêdo escreveu um magistral artigo sobre a “A Família Feitosa e o Cangaço”. No referido texto o autor cita o cangaceiro Zé Bizarria, Feitosa e Pereira ao mesmo tempo, e a sua ligação com o fenômeno do cangaço:

José Pereira Bizarria ou “José Custódio Bizarria é mencionado por diversos autores, sempre em episódios também ligados ao cangaço, pois tomou parte em alguns eventos marcantes na história do banditismo rural. Podendo-se destacar também o fato de ser ele sobrinho de Ioiô Maroto, o Crispim Pereira de Araújo.

       
Ioiô Maroto

José Bizarria era fruto da união de um Feitosa dos Inhamuns com uma Pereira do Pajeú, pois sua mãe, Joaquina Pereira de Araújo, também conhecida como Joaquina Pereira Bizarria (Dona Quina), era irmã de Crispim Pereira de Araújo, enquanto que seu pai chamava-se Manoel Custódio Bizarria.
       
Seu genitor, Manoel Custódio Bizarria, era filho de José Custódio Bizarria (Cazé), que, por sua vez, era filho do Capitão José Custódio Bezerril e de Dona Matilde. Mas onde está o parentesco com a Família Feitosa?
       
O parentesco com os Feitosa provém tanto de Dona Matilde quanto do Capitão José Custódio Bezerril, porque ela era filha de Vicente Pereira e Francisca Alves Cavalcante. Já o Capitão José Custódio Bezerril era filho de Leandro Custódio Bezerril (1º) e de Josefa.
       
José Bizarria é citado com frequência entre os integrantes do bando de Sinhô Pereira. E, no dia da morte de Luiz Gonzaga Ferraz, José Bizarria também esteve presente, ao lado do tio, Ioiô Maroto, tomando parte na luta, da qual saiu gravemente ferido com um tiro no pescoço, sendo socorrido por Pedro Caboclo, e, depois, tratado com raspa de catingueira. José Bizarria não chegou a se casar e morreu assassinado por um policial em Jati/CE (antes, Macapá).”

Alistamento Eleitoral de José Pereira Bizarria. Na época, o mesmo era residente na fazenda Cristovão, município de São José do Belmonte (PE).

Zé Bizarria, da gema dos Pereiras:

Dona Francisca Pereira da Silva (filha de José Mateus Pereira da Silva e Joaquina Pereira da Silva), conhecida como Chiquinha Maroto, foi casada com o Sr. Galdino Alves de Araújo Maroto. Este casal residia na Fazenda Queimada Grande, município de Belmonte, na extrema com o Ceará. Foram pais de 6 filhos:

1 – Crispim Pereira de Araújo (Ioiô Maroto). Este casou três vezes. A primeira com Maria Océria, filha de Manoel Pereira da Silva Jacobina (Padre Pereira). A segunda com Francisca Pereira Neves e a terceira com Generosa.Pereira Neves, ambas filhas de Antônio Cassiano Pereira da Silva (ex prefeito de Belmonte) e dona Maria Antônia da Soledade Neves, da fazenda Baixio em Belmonte.

2 – Antônio Pereira de Araújo (Antônio Maroto). Este casou com Francisca (Chiquita) filha de Deodato Pereira da Silva e Filadélfia Pereira da Silva. Desse casamento houve 13 filhos: José, Galdino, Raimundo, Deodato, Vicente, Antônia, Beatriz, Letrice, Maria (Marica), Ana (Santa), Antoniêta, Mariêta e Lorêta.

3 – Januário Pereira de Araújo (Sinhô). Casou com Úrsula Nunes de Barros (das Preces dos Nunes). Desse casamento houve três filhos: Luiz (Luizinho), Manoel e Moça.

4 – José Pereira de Araújo (Zé Maroto). Este casou duas vezes. A primeira com Generosa Pereira da Silva (Lozinha) filha do primeiro casamento de Juvenal Simplício Pereira da Silva com Josefina Maria de Jesus. Filhos: Antônio, Juvenal, Galdino e Josefina. A segunda com Ana Pereira da Silva (Nana), filha de José Avelino Pereira da Silva e de Maria Pereira da Silva (Iaiá). Filhos: Olinto e Maria (Iaiá).

5 – Ana Pereira de Araújo (Santa). Esta casou com Antônio Pereira Jacobina (Antônio Padre). Não houve filhos.

6 -  Joaquina Pereira de Araújo (Quina). Esta casou com Manoel Custódio Bizarria (Né Bizarria), dos Feitosas dos Inhamuns. Desse casamento houve 6 filhos: JOSÉ PEREIRA BIZARRIA – ZÉ BIZARRIA (assassinado no Macapá), Francisco (Chico Bizarria, Galdino Bizarria, Antônio Bizarria, Maria (Lica), esposa de Joaquim Pereira, irmão de Sebastião Pereira (Sinhô Pereira), e Raimunda Bizarria (Mundinha).

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Pá butá na agenda

Seminário Cangaço Campina 2019

Campina Grande, PB

Quando: 22 a 24/11

Onde: Sítio São João - Centro - Campina

Breve traremos a programação oficial.





terça-feira, 15 de outubro de 2019

O rei cangaceiro e a princesa dos Tabuleiros

Lampião em Capela, SE

Por José Bezerra Lima Irmão

Lampião esteve em Capela (SE) duas vezes. A primeira foi em novembro de 1929. A visita foi pacífica. A segunda foi em outubro de 1930, e aí o pau comeu, e ele desistiu de entrar na cidade. Transcrevo, a seguir, trechos do meu livro Lampião – a Raposa das Caatingas, em que faço a descrição desses episódios. 

Lampião ia encontrar-se com Eronides de Carvalho, oficial do Exército que viria a ser governador de Sergipe. Primeira passagem por Dores Refeito daquela provação, Lampião desceu para Sergipe, passando novamente por Carira na manhã do dia 24 de novembro de 1929, um domingo. Demorou algumas horas no povoado, fez compras nas bodegas de Zé Martins e Balbino e rompeu na direção da Cotinguiba.

Na tarde da segunda-feira, dia 25, acompanhado de 14 cangaceiros, o Capitão Virgulino chegou a Nossa Senhora das Dores, dirigindo-se diretamente à delegacia de polícia. O delegado recebeu pacificamente os visitantes. Lampião mandou cortar o fio do telégrafo, para evitar que fossem alertadas as autoridades de outras localidades. Mandou avisar ao povo que tivesse calma, pois não faria mal a ninguém.



Pediu ao intendente (prefeito), Manoel Leônidas do Bonfim, que fizesse uma coleta de dinheiro com os moradores ricos da cidade. O delegado ajudou o intendente a fazer a arrecadação. Conseguiram juntar quatro contos e quinhentos mil-réis. Os cangaceiros deram uma volta pela cidade, respeitosamente, fizeram compras, comeram, beberam, pagando tudo. Circulou o boato de que Lampião ia pernoitar em Dores e pretendia promover um baile. Os pais de família ficaram alarmados. O escrivão, conceituado cidadão chamado Petronílio de Menezes Cotias, temendo por suas cinco filhas jovens, foi falar pessoalmente com o Capitão Virgulino.

O cangaceiro tranquilizou-o:
– Nun se avexe não, seu Cutia... Cuma eu já diche pro delegado, ninguém pricisa se preocupá cum nada. Tou aqui de passage. Vim a Segipe foi pra fazê amigos.

Ao anoitecer, tomou emprestados 4 automóveis e rumou para Capela, distante cerca de 3 léguas. Lampião viajou na fubica do comerciante e industrial Otacílio Menezes – dirigida pelo próprio Otacílio. No caminho, foram conversando prazenteiramente, como velhos conhecidos. No banco traseiro iam Ezequiel e Virgínio, sempre atentos.   Lampião visita Capela, a Princesa dos Tabuleiros Já chegando a Capela, num sítio denominado Sobradinho, de seu Xixiu, Lampião mandou parar o automóvel e enviou Otacílio à cidade para avisar ao intendente que queria conversar com ele. O intendente, Antão Correia de Andrade, recebeu o recado por volta das 7 horas da noite. Consultou o delegado, para saber se era possível resistir.

O delegado foi claro:
– Tá doido, Correinha?! Nem me fale uma coisa dessa! Eu só tou cum um cabo e três sordado, purque os outo foro cum o tenente Elesbão procurá uns bandido no sertão. Além disso, esses sordado nun sabe brigá, só serve pra prendê e dá pisa im cabra safado...
– Tá bem – concordou o intendente. – Já qui nun tenho cumo dexá de atendê o pidido do Home, vou buscá-lo. Dê orde pra qui os sordado nun se meta.

Não foi preciso dar a ordem, pois a essa altura o destacamento já tinha dado no pé. Uma hora depois, o Capitão Virgulino Ferreira, com o intendente à sua esquerda e tendo atrás de si sua estranha comitiva, entrou tranquilamente na cidade. Por onde passava, acenava para o povo, assegurando que não iria fazer mal a ninguém:

– É Lampião qui tá chegano... Amano, gozano e quereno bem...

Na Esquina do Padre, onde ficava a casa paroquial, os cangaceiros dividiram-se em dois grupos: uns foram com Arvoredo montar guarda no posto do telefone na Rua Pé de Banco e os outros acompanharam Lampião, que pediu ao intendente para levá-lo à agência do telégrafo. Como o telegrafista tinha ido ao cinema, Lampião deixou um cabra vigiando a agência e foi procurar o operador do telégrafo no Cine-Teatro Capela.

Cine-Teatro Capela

Naquela época os filmes eram “mudos”, e por isso durante a exibição alguns músicos tocavam modinhas para entreter a assistência. Em Capela a orquestra era um piano, uma rabeca e uma sanfona. Ouvia-se a valsa Abismo de Rosas. Quando os cangaceiros entraram no cinema, houve um rebuliço medonho. Os músicos pararam de tocar. As luzes acenderam-se. Interrompeu-se a projeção do filme. O cangaceiro Virgínio, vulgo Moderno, cunhado de Lampião, mandou que todos ficassem quietos, avisando que ninguém podia sair. Algumas pessoas conseguiram escapulir, entre elas o juiz, Dr. Otávio Teles de Almeida, que, esgueirando-se de quatro pés entre as cadeiras, alcançou uma portinhola que havia por detrás da tela, pulou o muro do cinema e foi se esconder no convento das freiras. Depois que foi localizado o telegrafista, Lampião mandou que apagassem as luzes e continuassem a passar a fita.

O filme era O Anjo das Ruas. Lampião não viu graça nenhuma naquilo e saiu do cinema. Preferia tratar de negócios. Lá fora, chamou Moderno e mandou que fosse procurar o delegado de polícia. Perguntou ao telegrafista: – Cuma é o seu nome, cabrinha? – Zózimo Lima – respondeu o rapaz.

– Quero falá ũas coisa cum você, Zosmo. Cunvessa de home pra home. Venha cá. Afastou-se para o lado, e por algum tempo conversou a sós com o telegrafista. Zózimo Lima nunca revelou o que Lampião queria. Apenas contava que Lampião lhe recomendou que não desse notícia dele. Essa explicação não convence, pois se fosse para isso não precisava falar reservadamente.

É provável que Lampião tenha pedido a Zózimo a relação dos homens ricos de Capela. Daí a pouco, Moderno retornou com o delegado, major Pedro Rocha, um homem de mais de 80 anos, remanescente da Guarda Nacional. Estava um pouco trêmulo, mas esforçava-se para se manter altivo. Lampião, respeitosamente, apertou a mão dele, tranquilizando-o:

– Fique sem sobrosso, colega. Nun vai tê arteração. O respeitável major engoliu em seco. Nunca lhe passara pela cabeça ser “colega” de um cangaceiro.

Lampião chamou o intendente: – Seu Antão, tou sabeno qui o sinhô é irmão do chefe de puliça de Segipe.
O intendente confirmou:
– É verdade, Capitão. Sou irmão do chefe de polícia estadual, Dr. Heribaldo Dantas Vieira.
– Será qui eu posso falá cum ele no telefone?
– Se o sinhô qué... – concordou o intendente.

Foram ao posto telefônico, que continuava sob a vigilância de Arvoredo. Lampião não conseguiu telefonar para o chefe de polícia porque a ligação para Aracaju dependia de conexões com postos telefônicos de outras cidades, que àquela hora já tinham encerrado os trabalhos.

Mesmo assim, Lampião deu 50 mil-réis de gorjeta à telefonista, dona Emília Sousa, e fez um pedido: – Me faça um favô, moça: amanhã, telefone pro Doutô Heribardo Viera e diga qui eu nun tenho nada contra ele, quiria falá cum ele só pra dizê qui me trate bem, cumo tou tratano o irmão dele. Sabendo que estava para chegar um trem procedente da capital, Lampião foi à estação ferroviária, na Rua São Pedro, aguardar a chegada do comboio. Por precaução, levou também o intendente, o delegado e o telegrafista. Não custou muito, ouviu-se o apito da locomotiva.

Quando o trem parou, soltando uma fumaça espessa que enegreceu tudo, alguns passageiros começaram a descer, sendo imediatamente abordados pelos cangaceiros. Outros, percebendo o que estava acontecendo, entraram em desespero e começaram a pular pelas janelas, do outro lado da plataforma, num desvario indescritível. Um dos que desembarcaram normalmente era um soldado chamado Gilberto Santos. Lampião segurou-o pela túnica, arrebatou-lhe o fuzil e perguntou:

– Macaco, você é de onde? Baiano ou segipano?
– Sou de Araca...caju... – respondeu o soldado, tremendo.
– Tu é de sorte, visse? Se tu fosse da puliça da Bahia eu ia tirar o teu couro agora mermo, cê nun ia dá nem um pio!

Examinou o fuzil do soldado com ares de entendido, tirou as balas e devolveu-lhe a arma, dizendo:
– Home, esse fuzi seu é mais véio do qui a Lua... Andá cum isso aí é o mermo qui andá cum um cacete... Vá simbora.

O soldado ia saindo, quando Lampião o chamou de volta:
– Você, assim cum essa farda, pode se incontrá cum meus minino e vão querê fazê argũa brincadera. – Chamou um cangaceiro e ordenou:
– Acumpãe esse macaco até o quarté.



Os cangaceiros tinham prendido o chefe da estação. Virgulino ordenou que lhe fosse entregue a renda. Conforme fazia nas localidades por onde andava, o Capitão avisou ao intendente que ele devia conseguir alguma contribuição dos homens ricos da cidade. Pediu inicialmente 20 contos de réis. Em face das ponderações do intendente, que explicou estar a região atravessando três anos de seca, sendo difícil juntar tanto dinheiro, Lampião reduziu a exigência para 6 contos, dizendo que sabia o que representam as secas, pois era filho do sertão de Pernambuco.

O próprio delegado de polícia, Pedro Rocha, foi encarregado de fazer a coleta entre os moradores de maiores posses. Quando o delegado chegou com o dinheiro arrecadado – só conseguira 5 contos –, Lampião mandou que fosse entregue a Moderno. O cangaceiro contou as notas por alto e meteu o pacote no bornal. Depois dos negócios, era chegada a hora de se divertir. Sempre acompanhado do telegrafista, por recear que ele tivesse algum meio de se comunicar com outras localidades, apesar do adiantado da hora, Lampião deu um giro pela cidade. Pediu que abrissem algumas lojas, pois os meninos queriam fazer compras. E de fato os cangaceiros compraram muitas coisas, inclusive joias, nas casas dos ourives Alfredo Assis e Euclides Silva.

Na Casa Stella, estabelecimento comercial de Jackson Alves de Carvalho, na Praça do Mercado, Lampião viu uma capa de chuva de gabardina e um parabelo. O parabelo era de uso pessoal do comerciante. A capa de borracha, também – o avô de Jackson criara um rapaz que se tornou suboficial da Marinha, e a capa era um presente que Jackson recebera do “tio”.

Lampião disse que ia levar a capa e o parabelo. Perguntou quanto devia. – Nada não, Capitão, eu... – Não sinhô, seu Jaque – contrapôs o cangaceiro –, a um home de sua marca nun se dá prijuízo. – Meteu a mão no bolso, tirou 500 mil-réis: – Tou lhe pagano. O comerciante, em agradecimento, presenteou o cangaceiro com um livrinho intitulado Vida de Jesus, da escritora adventista norte-americana Ellen G. White, apondo na folha de rosto a seguinte dedicatória: “Ao intrépido forasteiro Capitão Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião, com um abraço de Jackson Alves de Carvalho. Capela, 25 de novembro de 1929”.

Noutra loja, Lampião comprou uma lanterna de pilhas. Pagou sem pechinchar. Do mesmo modo que acontecera em Carira e meu ip Poço Redondo, passado o susto inicial, aos poucos foi-se espalhando a notícia de que não havia perigo, Lampião não ofendia ninguém. Então muita gente foi chegando para ver de perto o Rei do Cangaço. Por onde Lampião e seus cabras passavam eram acompanhados por muitos moradores da cidade. Custava acreditar que aqueles eram os tão temidos cangaceiros de tantas histórias tenebrosas que corriam de boca em boca nos sertões. Na parede do salão de sinuca de Manoel Pestinha, na Praça do Mercado, Lampião escreveu com o bastonete de giz de marcar os pontos do jogo:

“Capela – 25-11-29 Salvi Eu capm. Virgulino Ferreira Lampeão Deixo Esta Lça. para o officiá qui aqui parçar em minha priciguição, apois tenho gosto que Voceis me prisigam. Discurpe as letra qui sou um bandido cumo voceis me chama pois eu não mereço. Bandido e voceis que andam robando e deflorando as famia aleia porem eu não tenho este custume todos me desculpe a gente a quem me odiar. Aceite Lça. do meu irmão Ezequiel Vurgo Ponto Fino e de meu cunhado Virginio Vurgo Moderno.” 




Até o vigário de Capela, cônego José da Mota Cabral, conhecido como Padre Juca, veio falar com Lampião. Alguns cangaceiros pediram-lhe a bênção. O padre aconselhou-os a deixar a vida de crime. Lampião pediu ao telegrafista para levá-lo a uma pensão, pois os meninos estavam com fome. O telegrafista levou-os à Pensão Comercial, de dona Irinéia, uma senhora gorda, baixa, conversadeira. Enquanto preparava a comida, dona Irinéia não calava a boca: – Ói, seu Capitão, eu tenho galinha, frango, porco, carne de porco, galinha, frango, porco... Lampião impacientou-se: – Mĩa sinhora, se acalme!... Desse jeito vai até passá a mĩa fome!... Foi o telegrafista quem provou a comida antes que o grupo se servisse, pois Lampião receava que pusessem veneno nos alimentos. Não satisfeito com essa precaução, o cangaceiro mergulhou uma colher de prata na comida, meio que considerava seguro para detectar a presença de veneno.

Depois do jantar, os cangaceiros passaram perfume no corpo e foram passear de automóvel. Por volta da meia-noite, dirigiram-se para o cabaré, que chamavam de “distrito”, na Rua Coelho Campos, e ali foram se revezando: enquanto uns montavam guarda, os outros se divertiam com as mulheres. Lampião levou para o quarto uma mulata chamada Enedina. Ela quis ajudá-lo a despir-se. Lampião disse: – Nun pegue im nada. O cangaceiro encostou o fuzil na parede, e logo estava pronto para a função – de roupa e tudo, não tirou nem as alpercatas. Durante o procedimento, Moderno ficou na esquina, a uns 10 metros, e Arvoredo foi vigiar o fundo da casa. Enedina gostou do chamego. Perguntou: – O sinhô tem mulé? – Não – respondeu Virgulino. – Home qui veve nesta vida nun pode tê pensão. Enedina ficou rica – ganhou 70 mil-réis! Às 3 horas da madrugada, Lampião soprou o apito para reunir o grupo.

Os cangaceiros entraram nos automóveis que tinham sido requisitados em Dores. Lampião apertou a mão do intendente, acenou para o delegado e os demais, e disse: – Adeus! Nun aperto a mão de todos pra nun gastá... Satisfeito com o próprio gracejo, entrou no carro. O intendente não acreditava que estivesse livre do problema. Na fazenda Pedras, Lampião mandou parar os veículos. Despediu-se de Otacílio: – Vamo ficá aqui, seu Otacilo. Tou ino pra Aquidabã. Até mais vê, e munto obrigado. Quando os automóveis se foram, o bando tomou o rumo de Canhoba. No dia seguinte, o chefe de polícia de Sergipe fez seguir para Capela em trem especial um contingente de 50 praças sob o comando do coronel Severino Gonçalves.

A segunda passagem Tiroteio em Capela 

Lampião sentia-se tapeado pelos sergipanos. Até então, em suas incursões por Sergipe ele se limitara a pedir dinheiro, montarias e certos favores. Não permitia que seus homens maltratassem ninguém.

Na primeira vez em que esteve em Capela, foi recebido pelo prefeito (intendente), conversou com o padre, teve até tempo de namorar certa criatura, mas foi só dar as costas todo mundo virou valentão. Nos jornais ele era chamado de tudo o que havia de ruim. Estava disposto a dar uma lição naquela terrinha de gente ingrata. No início da tarde do dia 15 de outubro de 1930, o bando passou pelo povoado Outeiro, onde o fazendeiro Alvino Ferreira e sua família foram submetidos a maus-tratos, sendo por fim incendiado o seu paiol de algodão. Por volta das 3 horas, Lampião chegou à fazenda de Félix da Mota Cabral, nos arredores de Capela. O fazendeiro era irmão do vigário, José da Mota Cabral (Padre Juca). No momento, Félix Cabral estava vendendo gado a uns marchantes. Os cangaceiros apoderaram-se dos cavalos dos marchantes.

Dali, parte do bando seguiu para a fazenda Lavagem, e Lampião desviou-se com os demais para o engenho Tabocal, de seu Ioiô, levando Félix como guia. Os cangaceiros submeteram os moradores a vexames, tomaram dinheiro de quem tinha, aplicaram bolos de palmatória em uma garota. A mocinha apegou-se a Félix Cabral: – Seu Félis, pur Nossa Sinhora, nun dexe esse home me batê!... Seu Félix disse:  – Mĩa fia, eu nun posso fazê nada... eu tamém tou preso... As cenas de maus-tratos repetiram-se na fazenda Pedras, do velho José Cabral. No caminho, os cangaceiros capturaram Jucundino Calasans, do engenho Recurso, e levaram-no como refém, juntamente com José Xavier de Andrade e Renato Sousa. Lampião tomou emprestado um automóvel e rumou para a cidade, com a cabroeira atrás, a cavalo. Pretendia entrar em Capela em grande estilo, como da vez anterior.

Chegando perto, na localidade Lá Vem Um, mandou parar o veículo, a fim de esperar os cangaceiros, e despachou um mensageiro, com a incumbência de informar às autoridades sua intenção de entrar pacificamente na cidade. Mandou dizer que estava com 50 homens – na verdade eram somente 18.



Os moradores entraram em pânico. Tinha-se notícia do que acontecera em Queimadas, logo após a passagem do bando por Capela no ano anterior. Encontravam-se em Capela uns soldados vindos de Vila Nova (atual Neópolis), em diligência relacionada com a Revolução de Outubro. Em Sergipe, a “revolução” era uma coisa mais ou menos fictícia, pois, a rigor, ninguém sabia do que se tratava, e não havia luta, apenas perseguição a adversários. O sossego da tropa acabou quando estourou a notícia de que Lampião estava para chegar. Apesar do apelo da população, o comandante contrapôs que estava ali para reprimir revoltosos, e não para lutar com cangaceiros. Num abrir e fechar de olhos, os milicos sumiram. Dois soldados do destacamento local estavam na casa do médico Odilon Machado.

Encorajados pelo major Honorino Leal e por um viajante comercial que estava de passagem por Capela, chamado Josias Mota, que dizia ser aposentado da Marinha, os soldados disseram que estavam dispostos a impedir a entrada dos cangaceiros, desde que contassem com o apoio dos civis. Josias e o major mandaram chamar todos os homens que tivessem armas em casa. Despacharam de volta o mensageiro: podia dizer a Lampião que se quisesse entrar, entrasse, mas seria recebido à bala. Lampião não se mostrou surpreso com a resposta e apenas disse: – Ah, entonce, se é assim qui quere... Félix Cabral, temendo o pior, prontificou-se a ir conversar com o intendente, com o delegado, com o padre. – Coroné, o sinhô vai mais nun vorta... – desconfiou Virgulino.

– Sou home de palava, Capitão! – respondeu Félix. – Se lhe digo qui vou e vorto, vou e vorto! – Apois vá. Mais fique sabeno, coroné: se o sinhô nun vortá, eu vou nas suas fazenda, mato seu gado e toco fogo nas suas cana, arraso tudo!... Félix Cabral montou no burro e foi à cidade. Quando começou a expor suas razões, Josias Mota nem quis ouvir o resto: – Seu Félix, o sinhô mi discurpe, mais o sinhô tá preso. Nun sabe qui é crime sê coitero? Félix se exaltou: – Eu, preso?! Quem você pensa qui é?! Vim só dá um recado, e já qui nun quere acordo, vou vortá e dizê a resposta!... – Ah, nun vai não... – Vou, eu dei mĩa palava qui vortava, e vou cumpri! – Cum bandido ninguém sustenta palava, seu Félix!

Enquanto isso, os boatos corriam soltos na cidade – o coronel Félix Cabral estava preso! Era coiteiro! Amigo de Lampião de longa data! Lampião ia invadir a cidade para soltar o amigo! Capela ia pegar fogo! O mundo ia se acabar! Àquela época era raro o homem que não tivesse uma arma. Todo fazendeiro tinha um ou vários rifles, revólveres, garruchas. Os pobres tinham pelo menos uma espingarda de caça. Naquele momento terrível, com a notícia de que a cidade estava cercada pelos cangaceiros, o medo virou coragem, até as mulheres se armaram. Josias Mota organizou a defesa. Pôs atiradores nos telhados e até na torre da igreja de Nossa Senhora da Purificação.

Enquanto esperavam a volta de Félix Cabral, os cangaceiros esvaziaram o estoque de bebidas de uma bodega no Lá Vem Um. Como desconfiassem de veneno nas bebidas, o dono do boteco era obrigado a beber primeiro sempre que abria uma nova garrafa. Resultado: foi o primeiro a ficar bêbado.

E nada de Félix voltar. Lampião decidiu:

 – Nóis vamo dá uns tiro, qui é pra eles nun dizê qui nóis saiu sem brigá, cum medo. Volta Seca e Pretão ficaram tomando conta dos cavalos e do automóvel, e os demais se dirigiram à cidade. Quando os cangaceiros apontaram, estourou a fuzilaria. Além dos tiros vindos da cidade, vinham também tiros da retaguarda, como se os moradores pretendessem cercar o bando. Atiravam até da torre da igreja.

Os cangaceiros espalharam-se em quatro grupos e começaram a atirar também. Seus alvos principais eram o fundo da casa de Antão Correia e o oitão da casa do médico Odilon Machado. Uma bala entrou ninguém sabe por onde e furou o piano, que Odilon tinha comprado por uma fortuna. Os reféns aproveitaram o pandemônio e fugiram. Já estava anoitecendo, e Lampião percebeu que aquele ataque não fazia sentido.

Dois cangaceiros estavam feridos: Gato e Beija-Flor. Para completar a confusão, os cangaceiros que tinham ficado na retaguarda tomando conta dos animais não reconheceram os companheiros e abriram fogo contra eles, sendo preciso pôr os chapéus na boca dos fuzis e levantá-los acima das ramagens para serem identificados. Os moradores ouviram um apito, e num segundo os cangaceiros sumiram.

Custava acreditar que o pesadelo havia passado. Adroaldo Campos (Dudu da Capela), o rábula da cidade, que andava de muletas por ser aleijado, pegou a corda do badalo do sino e anunciou as Ave-Marias. Nunca o povo de Capela agradeceu com tanto fervor o amparo de Nossa Senhora da Purificação."

Imagens pescadas no acervo de Junior Gomes - Sergipe em Fotos

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

O Estado de São Paulo, edições de 18 e 19 de Outubro de 1969.

Encontro histórico de ex-cangaceiros 

Transcrição de Antonio Correia Sobrinho



Eis o que restou do cangaço

“Sila saiu correndo, agachada. Uma bala acertou a cabeça de outra mulher, espirrou miolo no vestido de Sila; maldade, ela só tinha 15 anos. Depois, foi muito tiroteio, finado seu Rastejador também morreu. Vi Lampião pondo sangue pela boca. Um dia, resolvemos entregar, cangaço acabou, mas só acabou mercê da traição de cangaceiros que ajudaram as Volante, contavam os pontos da gente”.

Balão ajeita a gravata, no aeroporto de Congonhas. Ele, cangaceiro do bando de Lampião, hoje batedor de estacas para fundações de prédios, está com os companheiros esperando dona Expedita, filha de Lampião, Vera, neta do cangaceiro, e mais Labareda e Saracura. Todos vão reunir-se em São Paulo para o lançamento de “As táticas de guerra dos cangaceiros”, de Christina Matta Machado.

O livro vai ser lançado dia 24, a partir das 16 horas, na Aliança Francesa, rua General Jardim, 172.

Saudade 

Quando o cangaço acabou e o governo deu anistia, a Polícia separou os cangaceiros: cada um teve que ir para um lado. Faz muito tempo que vários moram em São Paulo, mas não sabiam. Só quando Christina começou a procurá-los é que eles ficaram sabendo dos velhos companheiros, puderam se reunir para relembrar os causos de então. Ontem, em Congonhas, estavam vários deles, esperando os outros. Estava Marinheiro, um ano de cangaço, hoje funcionário da Caixa Econômica Estadual; estava Pitombeira, 3 anos de bando, entrou para não ser morto pela Polícia, hoje funcionário da Prefeitura. Estava também Criança, 7 anos de lutas, a glória de enfrentar sozinho, por duas horas, a Volante, para deixar o bando escapar. Criança, hoje, vende tomate como ambulante.

Em Congonhas estava também Sila, mulher de Zé Sereno que não pode ir (está com a perna engessada) e estava Dadá, apoiada na muleta. Sua perna direita ficou no sertão, crivada de balas de metralhadora, da mesma arma que matou seu marido, Corisco, que ela atentava defender. Estava em Congonhas o Balão, acompanhado de cinco de seus 8 filhos e contando para todo mundo que até hoje é solteiro. Balão, alegria do bando, tocador de sanfona, o mais valente de todos, mostrou ontem que não mudou. Ele foi piadas o tempo todo, mesmo quando tirou os sapatos e a meia por causa de um ferimento no pé que “tá ameaçando arruinar”.

Visitas

Até o dia 24, os cangaceiros vão visitar São Paulo, conhecer coisas novas, principalmente os que vieram de longe que a Varig trouxe de Sergipe e Alagoas. Ele irão ao Ibirapuera, a cinemas, restaurantes, serão entrevistados e aguentarão as luzes fortes da televisão, e queiram ou não vão acabar entendendo que hoje eles são gente importante, que apesar dos crimes que cometeram e talvez mesmo apenas por isso, eles passaram a ser história, são uma página da vida do Brasil.

Para contar a história do cangaço, Christina viajou quase todo o Nordeste, pesquisou em 34 municípios e se tornou amiga daqueles homens. Com os dados que colheu, escreveu o livro e vai defender tese em História, sob o tema “Cangaço, aspectos socioeconômicos”.

Morrer apanhando ou ser Cangaceiro

Embora arrependidos de terem sido cangaceiros, os cabras de Lampião dizem que não havia saída. Balão conta que a Polícia batia em todo mundo, para que contasse o paradeiro do bandido, muitas vezes, matava. Um companheiro dele teve que servir de cavalo para um soldado com esporas. Por isso, “quem não queria morrer apanhando tinha que ir para o cangaço”. Balão, entretanto, foi para o sertão por outro motivo. Engraçou-se – diz ele – com uma menina amiga de Lampião e alguns homens do bando quiseram matá-lo; ele fugiu com outro grupo e, depois, quando esse se uniu com o de Lampião, “a intriga foi esquecida”.

Pitombeira fugiu porque um irmão e um “primo carnal” foram mortos pela Polícia, que tentava fazer com que contassem onde estava Lampião. Ele ia ser morto também e fugiu.

O final 

Para todos, o fim do cangaço foi a morte de Lampião, o líder que teve até 260 homens sob suas ordens. Quando ele morreu, o bando que chefiava tinha '36' e 11 ficaram “naquela jornada”. Havia muitos antigos colegas que ajudavam a Polícia e, por isso, fugiram todos para Sergipe, estado amigo, para combinar a “entregação ao governo”.

Balão conta como foi a fuga, “a volante matou Lampião, tive tempo só de pegar embornal de subsistência e de bala e quando a metralhadora engasgou passei no meio dos macacos, fugi. O Presidente tinha espalhado aviso em toda fazenda, para entregar, que ele garantia a vida. Fomos para Sergipe e resolvemos – Juriti, Criança, Marinheiro, Pitombeira, eu – arriscar olho e mandamos avisar o cabo Miguel da volante, que viesse conversar, com três soldados, fuzil de boca para baixo. Ele veio, ficamos amigos, mas 300 praças de outra polícia cercaram o bando, tivemos que fugir para a fazenda Cuiabá, onde dançamos com a volante e bebemos oito dias sem parar. O capitão Aníbal, que trazia a ordem do governo, mandou fechar os portos das Alagoas, para que a polícia que queria matar a gente não entrasse em Sergipe”.

O caminho

“Começou então o caminho da entrega. Mas era duro, tinha tropa do capitão Aníbal, amiga, garantia a vida, tinha a tropa inimiga, queria matar a gente. Fomos ao Araticum, a Porto da Folha, a Monte Belo, mas, quando cheguei no Caveira, mataram quatro cabras meus.

Foi traição dos sergipanos e tivemos que brigar ainda no Pinhão. Só conseguimos achar o capitão Aníbal em Serra Negra, para entregar as armas. Não, ninguém foi preso, a gente ficava no quartel só na hora da troca de expediente e todos entregamos por livre e espontânea vontade. Cada dia chegava mais cangaceiros. Poucos foram mortos, como Juriti, na faca, quando era guarda-freio e estava regenerado. Depois, cada um foi para um lado, ninguém viu mais ninguém. Eu, fé em Deus, sou muito feliz.”

Ideologia

É Pitombeira quem fala, muito sério: “Hoje falam de subversivo, dizem que a gente era guerrilheiro, socialista; não era não. Nós só queríamos o bem, andar longe da Polícia, só atirava quando atacado e matava muito, muito menos do que o cinema tenta contar em filme de cangaceiro. Nós não fazíamos maldade com sertanejo, tinha que viver sem ódio no coração, tinha que ser amigo de todo mundo, se não estava perdido.

É, é verdade que quando não davam o que a gente pedia, tinha que tirar à força, mas não era comum.

História de usar banha de gente para lubrificar parabelo, mentira é que é. Nunca faltou o óleo nem a lixa para tirar ferrugem. Arma também tinha muita, os fazendeiros davam, se não nós perseguíamos.

Tinha fuzil, mosquetão, rifle, parabelo, mauser, tudo calibre grande, 7 milímetros, 30, 38. A gente atirava no ombro, apertando bem para não dar tranco ou, quando a coisa apertava, apoiava no braço, mas muito raro atirar de cima do cavalo. As balas, também, não ficavam, furou meu braço aqui, a perna do Balão, o ombro do Marinheiro, mas era bala boa, de fuzil, entreva e saia do outro lado, tudo bala bonita, de aço, niquelada”.
- “Mas esse tempo passou, hoje é diferente, vivo com a família em São Paulo, faço economia, gasto muito pouco, tenho três casinhas aqui.”

Paulo Afonso, a morte do Sertão

Faz alguns anos, Pitombeira voltou ao sertão. Hoje, ele não reconhece mais aquilo, nada é como onde nasceu.

“Paulo Afonso, a usina, ela matou o sertão. Hoje, não teria mais cangaço nem guerrilha, nem nada. A Usina de Paulo Afonso devorou o sertão, está comendo a caatinga, pondo civilização; muita gente sabe ler, as fazendas são diferentes, caminhão anda por tudo, tem televisão, tem pontes, tem luz chegando a todo lugar. O meu sertão, o sertão de Lampião, do cangaço, ele não existe mais.

Não há mais precisão do cavalo para a caatinga, nem o culote, meia sobre a calça, alpercata, não existe nem mais o chapéu bom para fazer chapéu de cangaceiro. Bem que em São Paulo eu vi uns que serviam, mas não é como no cinema; a gente usava chapéu de couro, bem macio, de camurça enfeitado. Comia a carne seca, às vezes um cabrito ou o boi dos outros, matando na bala”.

Maria Bonita

Do outro lado do saguão do aeroporto, Balão está fazendo graça, dizendo que cava tão fundo para cravar estacas que algum dia acha um japonês do outro lado do mundo. Dadá, mulher de Corisco, olha para ele, comenta com uma amiga: “Piada sim, mas valente, isso é uma fera”.

Balão fala ainda. “Eu brincava com Maria Bonita, lutava com ela, derrubava, rolava no chão. Lampião ria, dizia para a gente não zangar, para não dar briga. Nem parece que faz tempo que ela morreu com Lampião, pondo sangue pela boca. E hoje, eu tenho 60 anos, não tenho mais bala no corpo, o chumbo tiraram em São Salvador.

Doença? Não, cangaceiro nunca adoece, não carecia de médico. Só agora, em São Paulo, cavando um poço de estaca na Consolação é que bebi água sem saber que tinha suco do cemitério. Passei doze dias vomitando sangue, mas, no sertão, nunca adoeci. Duro era ver companheiro ferido, sabendo que a polícia degolava, implorando me leva, e não poder”.

Mulheres 

Criança também tem lembranças, fala das mulheres. “Tinha pouca mulher no bando, só dos chefões, ninguém mais queria, mas era valente, brigava junto com a gente. E tudo respeitava, respeitava mesmo, muito mais que aqui, em São Paulo”.

O avião está atrasado, os descendentes de Lampião demoram a chegar. Vera, com 14 anos, quer estudar medicina, espera que São Paulo lhe arranje um dia uma bolsa. Sua mãe mal conheceu os pais; criança ainda, foi entregue a um fazendeiro para criar. Lampião não gostava de criança no bando, ficava bravo quando um cabra apresentava sua mulher, de 13 ou 14 anos, perguntava se ia criar.

Pitombeira está falando de novo, achando difícil entender o que quer dizer o objetivo final.

Cangaceiros, sem remorsos

Os cangaceiros não dizem, mas, pela sua conversa, por suas histórias, eles não estão muito arrependidos de seus crimes. Acham que fizeram as coisas certas. Na hora de denunciar quem lhes vendeu as armas, dizem “que não se cospe no prato em que se come”. São desconfiados: na hora de dizer o nome verdadeiro, relutam muito.

Lampião era um grande líder. Representava a luta contra a opressão dos fortes, os fazendeiros da época. Essa é a opinião de Balão, Zé Sereno, Labareda, Criança, Dadá e Marinheiro. As histórias de cangaceiros são sempre iguais, só o começo é um pouco diferente. Todos se dizem injustiçados, fugidos da arbitrariedade da polícia. Acabaram na vida de crimes por consequência da situação que enfrentavam. Ninguém teve culpa. É o caso de Lampião, contado por Balão, ou Guilherme Alves. Esse cangaceiro afirma ter sido amigo e confidente do cabra Lampião:

- Lampião era comboieiro – pessoa que toca a tropa de burros de uma cidade para outra, vendendo mercadorias. Um dia, ele vortô pra casa e encontrô a famia morta. Foi uma outra famia, os Fulô. Lampião ficô revortado e entrô no grupo do padre Luiz Pereira Fagundes. Depois ele passó a liderá o grupo. Muitas vêis eu ouvi ele falá que ia se entregá pra poliça. Mais tudo mundo tirava isso da cabeça dele: se ele se entregasse, era homi morto.

Depois, Balão conta que o que estragava a moral do cangaceiro era a fama que eles tinham, quase sem culpa. Os jornais falavam mal do cangaceiro – que só queria viver, sem se sujeitar à opressão dos “coronéis de fazenda”. Para isso, é que os homens se internavam na caatinga. Geralmente, fugiam para o interior acuados pela polícia, a “volante”, por terem se insurgido contra alguma injustiça. Às vezes, eram apanhado pela “volante”, que os torturava para descobrir os cangaceiros. Eles eram obrigados a fugir e, para não morrer, matavam como cangaceiros.

E o cinema, Balão, você assistiu aos filmes de cangaceiro?

- Sisti, tudo mintira, elis qué imitá, mais num consegue.

Balão viu a morte de Lampião, viu quando o amigo tombou de costas, varado por diversas balas.

Existem algumas hipóteses segundo as quais o cangaceiro teria sido morto com veneno.

O sangue de Lampião saía, pelo nariz e pela boca. Balão fugiu do lugar. Posteriormente, ficou sabendo que os “volantes” cortaram-lhe na mesma hora a cabeça e a de Maria Bonita. Consta inclusive que ela teria sido decapitada ainda viva, pois seu ferimento não era dos piores.

- Ninguém morre de um tiro só.

Quando Balão fugiu, com o seu grupo, mandou um rapaz saber se Lampião tinha sido salvo. O rapaz voltou com fotografias das cabeças do cangaceiro e sua companheira. Os volantes decapitaram-nos e colocaram as cabeças em latas com vinagre e sal. Levaram depois essas latas pelas cidades, para intimidar o povo.

Zé Sereno, ou José Ribeiro Filho, perna quebrada, bengala. Ele conta que comprava suas armas de muita gente, até de “coronéis”. Pagava 600 cruzeiros por um mosquetão e 2 cruzeiros (antigos) por uma bala.

Mas o cangaceiro não podia fazer suas compras com a mesma tranquilidade de quem entra no armazém. Ele não podia se arriscar. Por isso, utilizava os serviços de um coiteiro. Era a pessoa encarregada de fazer as compras dos cangaceiros.

Zé Sereno, você pode dizer quem lhe vendia as armas? Não moço, num mi peça isso, tem muita gente viva lá ainda, num quero cumplicá ninguém.

Dadá, a mulher de Corisco, ouve a resposta de Zé Sereno e comenta:

- Num si cospe no prato que si come.

Isso mostra que, passados muitos anos das lutas, dos crimes e de toda aquela epopeia sangrenta, eles ainda continuam acreditando no que fizeram, não achando errado. Num si cospe no prato qui come diz Dadá, que é Sérgia da Silva Chagas, a mulher de Corisco.

Criança, ou Vitor Rodrigues Lima. Outrora uma fera; ontem, de terno e gravata, passou carregando uma criança no colo. Foi gozado, disseram-lhe: ao que chegou um cangaceiro, a pajem de criança.
Labareda, ou Ângelo Roque, 65 anos, parece muito mais velho. Quase não fala. Seus companheiros falam mais do que ele. Suas palavras são difíceis de ouvir, está muito velho. Mesmo assim, ele é muito objetivo, não gosta de muitos detalhes. Até repreende seus companheiros, quando estes contam suas histórias e se perdem nas minúcias. Marinheiro não fala nada, até o nome certo não quer dizer. Finalmente diz, é Antônio Paulo dos Santos.

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Mais um Tribunal

Lampião, o Rei do Cangaço, será levado a júri em Petrolina

O cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, mais conhecido como ‘Lampião’, será réu no primeiro Júri Épico, que acontecerá no próximo dia 31 de outubro, no Colégio Diocesano Dom Bosco, das 8h às 19h, em Petrolina. Por ser uma figura lendária e polêmica, o ‘Capitão’ foi escolhido para a estreia do evento, que ocorrerá anualmente e é de cunho processual, no qual haverá o conselho de sentença, que dará o veredicto acerca das acusações que pesam contra o réu.



Lampião, sua companheira Maria Bonita, Padre Cícero, Corisco e as pessoas de maior relevância que foram contemporâneas ao cangaço ganharão vida com a participação de atores que encenarão os personagens principais do caso. Mas a acusação e a defesa do réu serão feitas por profissionais do Direito, como o promotor de Justiça Criminal, Fernando Della Latta, e os advogados de defesa Marcílio Rubens, Wank Medrado, Henrique Márcula e o defensor público do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), Francisco Jairo Siqueira Coelho.



O Júri Histórico é um projeto idealizado pelo professor e advogado Anderson Wagner Araújo e pelo promotor Fernando Della Latta. O objetivo é promover uma interação entre o Direito e as demais ciências como a Sociologia, a História, a Filosofia e a Antropologia, além de possibilitar aos alunos do curso de Direito o contato com as chamadas metodologias ativas.

Didática

Para o professor Anderson Araújo, o Júri Épico é instrumento didático de grande valor, pois apresentará uma discussão interdisciplinar ilustrada por um tempo antigo. “Do ponto de vista da exatidão histórica, julgar um personagem do passado mostra-se impossível, mas sob a ótica da dinâmica acadêmica é potencialmente válido e capaz de produzir efeitos, pois trataremos de uma situação imaginária, perpassada por um contexto histórico real e um processo penal do tribunal do júri com todas as suas particularidades“, elucida Araújo.

Já confirmaram presença no julgamento de Lampião o Juiz da Vara da Infância e da Juventude, Marcos Bacelar, a juíza da Vara do Tribunal do júri, Elane Brandão Ribeiro, a promotora de Justiça no 1º Tribunal do Júri do Recife, Eliane Gaia, a promotora de Justiça do 2º Tribunal do Júri do Recife, Dalva Cabral Oliveira, o promotor de Justiça substituto do Recife, Rinaldo Jorge da Silva, a promotora de Justiça Cível de Petrolina, Cíntia Granja e os defensores públicos André Cerqueira (da Bahia) e William Micael (de Pernambuco).

O evento será realizado em parceria entre o Ministério Público de Pernambuco (MPPE), Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)/PE, Defensoria Pública de Pernambuco, TJPE, Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina (Facape) e a Faculdade de Tecnologia e Ciência (FTC).

Pesquei em Carlos Britto.com