quarta-feira, 29 de maio de 2019

Lampião na Serra Vermelha

O trágico e covarde assassinato de José Nogueira

Por: Luiz Ferraz Filho


Os livros sobre a história brasileira sempre trouxeram no capitulo sobre a Coluna Prestes o simbolismo da liberdade. Porém, nada foi mais aterrorizante para a população do Sertão do Pajeú, no mês de fevereiro de 1926, do que esses revoltosos sulistas. Vinda da Paraíba em direção ao Pajeú sob o comando do general Isidoro Dias Lopes, a Coluna Prestes contou com o "reforço" da boataria que estava alinhada ao bando de Lampião, para assim aterrorizar ainda mais o sertanejo. 
 
General Isidoro Dias Lopes
 
E foi esse boato que fez muitos fazendeiros da região abandonarem suas casas para se embrenhar na caatinga como esconderijo. Somada a isso, tinha também um batalhão patriótico para combater os revoltosos e que confundia ainda mais a população. Ao passarem por Betânia (PE), onde esfomeados saquearam o comercio local, os revoltosos marcharam em direção ao povoado de São João do Barro Vermelho (Tauapiranga), distrito de Serra Talhada. De lá, desceram pelas margens do Riacho São Domingos em direção a lendária vila de São Francisco, também distrito de Serra Talhada. 

Serra Vermelha vista da Fazenda de Zé Nogueira

Entre essas duas localidades, os revoltosos encontraram a Fazenda Serra Vermelha, na época fonte rica para o abastecimento da tropa composta de seiscentos ou oitocentos soldados. Com a barriga cheia, precisavam eles de uma pessoa da região para servir como "guia dos revoltosos" e nada melhor que um homem conhecido e respeitado por todos para usarem como "escudo". E foi assim que o influente dono da fazenda, José Alves Nogueira, acabou "sequestrado" pelos revoltosos. Três dias sem nenhuma regalia, andando a pé sob olhares dos soldados até ser libertado próximo ao povoado de São João do Barro Vermelho (Tauapiranga). 

Cruz no terreiro da casa demarcando o local 
onde foi covardemente assassinado 
Zé Nogueira pelo cangaceiro Antônio Ferreira.

Aliviado, mal podia imaginar José Nogueira que voltando para sua Fazenda Serra Vermelha passaria por situação ainda pior. Ao chegar, José Nogueira pediu para um dos moradores ir avisar aos parentes e familiares que estava tudo bem com ele e que  estava em casa. E nisso, aproveitou para ir na vazante (plantação no baixio) olhar uma cacimba que abastecia o lugar. Depois de algum tempo lá, José Nogueira recebeu um recado de Antônia Isabel da Conceição (Isabel de Luis Preto) que inocentemente disse que a força volante de Nazaré (comandada por Manoel Neto) estava no terreiro da casa esperando ele. Desconfiado, José Nogueira ainda perguntou: - Tem certeza que é a força ?. Tenho sim, respondeu Isabel. 

O fazendeiro João Nogueira (neto de Zé Nogueira 
e bisneto do major João Alves Nogueira), 
na calçada onde foi assassinado o avô em fevereiro de 1926.
 
 
Domingos Alves Nogueira 
(neto de José Nogueira) 

Ao subir da cacimba em direção ao terreiro da casa, José Nogueira avistou o bando de Lampião com 45 cangaceiros enfurecidos após saírem derrotados na tentativa de invasão ao povoado de Nazaré do Pico. Homem de firmeza, continuou José Nogueira o trajeto mesmo sabendo que dificilmente escaparia da morte. Nisso, o cangaceiro Antônio Ferreira, aproximou-se dele e falou: - É hoje José Nogueira. Ele ele respondeu: - Seja o que Deus quiser. 

Lampião mandou todos baixarem as armas e começou a conversar com o velho fazendeiro. Após a palestra, Lampião observou ele muito cansado, doente e asmático, liberando o fazendeiro. Deu voz de reunir e começou a seguir no destino da caatinga quando escutou um tiro. Tinha sido o cangaceiro Antônio Ferreira que havia covardemente atirado nas costas de José Nogueira. Vendo o ocorrido, Lampião reclamou dizendo que o velho estava doente e quase "morto". Então, Antônio Ferreira (que era irmão mais velho de Lampião) falou:

- Matei , tá morto e pronto. 

Era 26 de fevereiro de 1926. Calçou Antônio Ferreira as alpercatas (sandálias de couro) do falecido e seguiu junto ao bando caatinga a dentro. Segundo o fazendeiro João Nogueira Neto (neto de José Nogueira), durante anos o local onde o avô paterno foi assassinado ficou manchado com o sangue nas pedras. No local, os filhos do fazendeiro depois fincaram uma cruz para demarcar a tragédia. O corpo de José Nogueira foi enterrado no dia seguinte, do outro lado do riacho, no cemitério da Serra Vermelha. 
 
Deixou ele a viúva Francisca Nogueira de Barros (Dona Dozinha, tia dele) e sete filhos. 

Luiz Ferraz Filho, é pesquisador, Serra Talhada - Pernambuco
 
FONTE: (LIRA, João Gomes de - Memórias de Um Soldado de Volante) 
- (AMAURY, Antônio e FERREIRA, Vera - O Espinho de Quipá) - (FERRAZ, Marilourdes - O Canto do Acauã) - (SOBRINHO, José Alves - Zé Saturnino - Nas Pegadas de Um Sertanejo).  
 
FOTOS/ENTREVISTADOS: 
João Nogueira Neto e Domingos Alves Nogueira (netos de José Alves Nogueira).
 
Pescado no Cariri Cangaço

terça-feira, 28 de maio de 2019

Padre Cícero

De maldito a santo
A veneração popular padre foi rejeitada por mais de um século pela Igreja - mas não mais.

Por Lira Neto




Um padre que viveu sob o signo da controvérsia e morreu proscrito, condenado pelo Santo Ofício. Esse foi sacerdote brasileiro Cícero Romão Batista, acusado no fim do século 19 de proclamar falsos milagres, de incentivar o fanatismo popular e de se beneficiar financeiramente da devoção extremada de seus milhões de seguidores.

Em decorrência das acusações de que era um rebelde, um desobediente à hierarquia católica e um semeador de fanatismos, ele foi alvo de um inquérito eclesiástico que terminou por proibi-lo de rezar missas, de confessar fiéis e de ministrar sacramentos como o batismo e o matrimônio. Tornou-se, então, um pária da fé. Apesar de idolatrado pelos cerca de 2,5 milhões de peregrinos que acorrem todos os anos à cidade cearense de Juazeiro do Norte para reverenciar sua memória, Cícero foi um padre maldito, renegado pela Igreja Católica.

Fazedor de milagres

Toda a história pessoal de Cícero Romão Batista está permeada de mistérios, ambiguidades e contradições. Amado e odiado em igual medida por seus contemporâneos, depois de morto - e talvez ainda mais a partir daí - ele continua a provocar sentimentos idênticos de adoração e repulsa.

Nascido na cidade cearense do Crato em 1844, ordenado padre em 1870, Cícero viveu e cresceu na confluência de dois mundos. De um lado, o universo mágico do misticismo sertanejo, no qual a crença em lobisomens, almas penadas e mulas-sem-cabeça convivia com a festiva devoção aos santos padroeiros e com as advertências apocalípticas dos profetas populares, que pregavam o fim dos tempos. Do outro lado, o mundo da fé ritualizada, da disciplina clerical e da submissão cristã com a qual foi educado e doutrinado no seminário. Com um pé no maravilhoso, outro na ascese, Cícero protagonizou uma biografia acidentada, recheada de episódios mirabolantes que mais parecem beirar a ficção.

Entretanto, até os 45 anos de idade, sua vida nada teve de extraordinária. Em 1889, Cícero era um simples padre de aldeia, rezando missa numa minúscula capelinha do então povoado do Juazeiro, a 600 quilômetros de Fortaleza, quando um fenômeno misterioso chamou a atenção dos sertanejos, da Igreja e da imprensa. Ao ministrar a comunhão a uma beata - a humilde costureira e doceira Maria de Araújo -, a hóstia consagrada teria se transformado em sangue. "Não posso duvidar, porque vi muitas vezes", escreveu Cícero a dom Joaquim José Vieira, bispo do Ceará.

Os jornais abriram manchetes para noticiar o fenômeno e os sertanejos caíram de joelhos diante do proclamado milagre. A Igreja, porém, acusou Cícero e a beata de fraude. "Se Maria de Araújo recebe realmente provas do céu, que as vá gozando só, sem perturbar a boa ordem da diocese", desdenhou o bispo Vieira.

Fato ou embuste, o caso é que o padre e seus adeptos evocaram em sua defesa uma série de fenômenos mais ou menos semelhantes, devidamente chancelados pelo Vaticano sob a classificação genérica de "milagres eucarísticos". Mas uma frase atribuída ao então reitor do Seminário da Prainha, o padre Pierre-Auguste Chevalier, revelaria a dificuldade do clero tradicional em aceitar as manifestações da fé popular: "Jesus Cristo não iria sair da Europa para fazer milagres no sertão do Brasil", teria tripudiado o francês.

Chefe político

O episódio da hóstia que diziam se transformar em sangue rendeu a Cícero a admiração dos milhares de peregrinos, que desde então não nunca pararam de chegar a Juazeiro para testemunhar a suposta maravilha. Mas também significou para o padre uma longa via-crúcis de indisposições perante as autoridades eclesiásticas da época.

Banido pelo clero, Cícero passou a ocupar a posição de mártir no imaginário coletivo, ao mesmo tempo que começou a desfrutar de uma enorme notoriedade e de um imenso poder junto ao povo mais simples do sertão, vítimas históricas da seca e do descaso governamental. Aquela gente, sem perspectivas, sem dinheiro e sem chão, cada vez mais se identificava com o sacerdote que nunca foi propriamente um grande orador, mas em compensação sabia falar a mesma língua deles, chamando-os de "amiguinhos", ouvindo-lhes as queixas, distribuindo prédicas e conselhos.

Moralista severo, Cícero pregava contra os amancebados, os festejos pagãos e o desregramento das famílias. Numa terra em que imperava a lei do punhal e do bacamarte, seu lema mais famoso conclamaria os pecadores ao arrependimento: "Quem bebeu não beba mais, quem roubou não roube mais, quem matou não mate mais", costumava dizer.


 Estátua no Juazeiro do Norte em homenagem ao Padre.
Wikimedia Commons


Quando não pôde mais celebrar batismos, ele próprio aceitou apadrinhar inúmeras crianças, vindo daí o título de "padrinho padre Cícero", que na corruptela da linguagem popular resultou Padim Pade Ciço.

"Em cada casa um oratório, em cada quintal uma oficina", pregava ele, atraindo trabalhadores, agricultores e artesãos de todo o Nordeste, que passaram a se fixar e aos poucos transformaram o arrabalde em um importante centro manufatureiro. O povoado virou cidade autônoma e, em 1911, Cícero foi nomeado o primeiro prefeito de Juazeiro. Líder religioso, tornou-se também chefe político, igualmente polêmico e contraditório. Ao mesmo tempo que pregava aos "náufragos da vida", como se referia aos menos favorecidos, estabeleceu alianças com as elites poderosas.

A Santa Sé delibera

Entre 2001 e 2006, uma comissão multidisciplinar de estudos se debruçou sobre a vasta documentação relativa ao padre, em arquivos do Brasil e do Vaticano. Coordenada pelo bispo do Crato, dom Fernando Panico, tal comissão foi composta por especialistas de várias áreas do conhecimento: antropologia, filosofia, história, psicologia, sociologia e teologia. A finalidade era trazer à luz novos documentos que servissem para tentar responder a uma questão que sempre acompanhou o nome de Cícero: quem afinal foi esse homem, acusado de espertalhão por muitos, aclamado como visionário por outros tantos?

O relatório final da comissão foi entregue em maio de 2006 na Santa Sé. Junto, uma coleção de 11 volumes reunia as transcrições das centenas de cartas trocadas entre os principais personagens da história do padre. Um volume à parte levava cerca de 150 mil assinaturas de populares em prol da reabilitação, às quais se somava um abaixo-assinado no qual se lia o nome de 253 bispos brasileiros favoráveis à causa. Em complemento à papelada, a carta de dom Fernando ao papa: "Venho com toda esperança e humildade suplicar a Vossa Santidade que se digne reabilitar canonicamente o padre Cícero Romão Batista, libertando-o de qualquer sombra e resquício das acusações por ele sofridas",

Em setembro de 2008, a igreja de Nossa Senhora das Dores - o templo que Cícero construiu em Juazeiro e no qual depois se viu impedido de rezar missa - foi elevado pelo Vaticano à categoria de basílica. Com isso, o brasão de Bento XVI foi sintomaticamente colocado à porta de entrada, bem à vista dos romeiros que chegam para louvar o Padim. No templo em que o padre está enterrado, a capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, também em Juazeiro, foi autorizada a instalação de um vitral multicolorido em que se destaca a imagem de Cícero, ao lado de outros santos oficiais.

Em 2015, finalmente, o perdão se tornou 100% oficial. O bispo Dom Fernando Pânico, declarou sua reabilitação em 13 de dezembro. Esse é o primeiro passo para uma posterior beatificação, ou seja, o reconhecimento canônico de que o homem Cícero Romão Batista teria vivido na plenitude das virtudes cristãs, sendo um "bem-aventurado", resultou na consequente autorização para o culto público a seu nome. Devido às milhares de graças que os romeiros dizem ter alcançado por intercessão do padre Cícero - cegos que teriam voltado a ver, aleijados que andaram novamente, loucos que teriam recuperado o juízo -, o caso, ainda pode evoluir da simples beatificação para a efetiva canonização, quando então ele seria elevado à honra dos altares de toda a Igreja. Esse processo burocrático, como ocorreu com Frei Galvão (1739-1822), o primeiro santo nascido no Brasil e durou vários anos.

Santo sertanejo

A polêmica trajetória de Padre Cícero

➽1844: Cícero Romão Batista nasce na cidade do Crato (CE).

➽1870: Cícero é ordenado padre, apesar das reservas do reitor do seminário, que o julgava um aluno "teimoso" e "dono de ideias confusas".

➽1872: Sem ter recebido nenhuma paróquia, o jovem padre aceita o convite de moradores para rezar a missa de Natal no pequeno povoado de Juazeiro, vizinho ao Crato. Segundo ele, um sonho faz com que continue a morar ali para sempre. Jesus teria pedido a Cícero que "tomasse conta" dos pobres do local.

➽1889: 1 de março, sexta-feira da Quaresma, o padre Cícero oferece a comunhão à beata Maria de Araújo e a hóstia se transforma em sangue. O fenômeno teria ocorrido por semanas seguidas, até 15 de agosto, dia da Ascensão de Nossa Senhora. Os paninhos manchados de sangue são adorados como relíquias sagradas. O milagre vira notícia na imprensa de todo o país.

➽ 1891: O bispo do Ceará, dom Joaquim José Vieira, censura Cícero e o monsenhor Monteiro por proclamarem milagres ainda não investigados pela Santa Sé. Cria uma comissão de inquérito eclesiástico, formada pelos padres Francisco Antero e Clycério da Costa Lobo. A ordem é desmascarar um possível embuste.

➽1892: O padre Antero viaja ao Vaticano em defesa de Cícero. O Santo Ofício examina o caso. Em agosto, o bispo cearense proíbe Cícero de rezar missas, pregar aos fiéis, confessar e ministrar sacramentos.

➽ 1894: o Santo Ofício condena os fatos como "prodígios vãos e supersticiosos. Os padres adeptos do milagre se retratam. Menos Cícero.

➽1898: Cícero vai ao Vaticano se defender. É interrogado e depois recebido pelo papa Leão XIII. O Santo Ofício absolve Cícero das censuras, desde que ele guarde silêncio sobre o caso. O padre jura submissão, mas segue suspenso das ordens sacerdotais. Os paninhos sujos de sangue são roubados da matriz do Crato e desaparecem por vários anos.

➽1908: Atraído por notícias da existência de uma valiosa mina de cobre na região, chega a Juazeiro um baiano misterioso: Floro Bartolomeu. Médico, rábula e garimpeiro, ele passa a ser o principal braço político de Cícero.

➽1909: Começa a circular O Rebate, primeiro jornal de Juazeiro, fundado para defender a tese da emancipação do povoado em relação ao Crato. Floro Bartolomeu é um dos editores.

➽1910: Morre misteriosamente o professor José Marrocos, um ex-seminarista que exerce grande influência sobre Cícero. Floro é acusado de tê-lo envenenado, mas nunca se prova nada a esse respeito.

➽1911: Juazeiro se emancipa. Cícero, filiado ao Partido Republicano Conservador, é nomeado primeiro prefeito do novo município. Permanecerá quase duas décadas no cargo, sendo reeleito seguidamente. Na data da posse, sela um pacto de paz com os principais coronéis da região, no qual todos prometem parar as animosidades mútuas.

➽1913: Em acordo com o governo federal e com o aval de Cícero, Floro viaja ao Rio de Janeiro para tramar a queda do então presidente (cargo igual ao de governador) do Ceará, Franco Rabelo. De volta, Floro depõe as autoridades municipais e instala uma Assembleia estadual paralela para caracterizar a duplicidade de poderes e provocar uma intervenção federal.

➽1914: O governo estadual reage. Manda tropas para atacar Juazeiro. Cícero segue o conselho de um sobrevivente de Canudos e pede aos moradores que cavem um fosso gigantesco em torno da cidade: o "Círculo da Mãe de Deus". Com isso, o ataque fracassa. Juazeiro parte para a ofensiva. Comandado por Floro, um exército de jagunços e cangaceiros toma o Crato e várias outras cidades cearenses, cercando Fortaleza. O governo federal decreta a intervenção no Ceará. Cícero é nomeado vice-presidente do estado.

➽1916: A Santa Sé declara que Cícero, aos 72 anos, por ainda alimentar o "fanatismo", está excomungado. Mas ele jamais saberia disso. Temendo pela saúde do velho padre, o bispo do Crato, Quintino Rodrigues, evita aplicar a excomunhão e exige dele uma retratação pública. O Santo Ofício revê a pena, mas mantém suspensas as ordens sacerdotais.

➽1926: A Coluna Prestes entra no Ceará. Cícero escreve carta aberta a Prestes, conclamando-o à rendição. Floro tem a ideia de convocar Lampião para integrar o chamado "Batalhão Patriótico", organizado para dar combate à Coluna. É quando o cangaceiro recebe a patente de capitão e passa a assinar "Capitão Virgulino". No mesmo ano, Cícero é eleito deputado federal, mas não assume o cargo, por causa da idade avançada.

➽1930: Vitória da revolução que leva Getúlio Vargas à Presidência da República. Cícero escreve uma carta aberta ao povo, classificando os revolucionários de "mensageiros de Satanás".

➽1934: Morre Cícero Romão Batista. No testamento, ele deixa a maior parte dos bens para a Igreja. Após o falecimento do padre, os paninhos manchados de sangue reaparecem em poder de uma beata. Por ordens do novo bispo do Crato, de acordo com o que determinara o Santo Ofício, eles são destruídos e queimados.

➽2001: O cardeal Joseph Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, reabre o processo que culminou na suspensão de Cícero.

➽2005: Ratzinger é eleito papa. No ano seguinte, recebe a documentação de uma comissão interdisciplinar de estudos que sugere a anistia, post-mortem, do padre.

➽2015: O padre Cícero é perdoado das punições impostas e reconciliado com a Igreja Católica. O processo de beatificação passa a ser possível.

Pescado em Aventuras na História

domingo, 26 de maio de 2019

75 Anos da morte de Corisco

 Por: Liandro Antiques..

"Vamos sambar minha gente até o sol raiá, que já mataram Corisco e balearam Dadá"...

Não poderia deixar passar em branco uma data como essa, muito importante para a história de Barra do Mendes.



Em 25 de maio de 1940, há exatamente 75 anos, era capturado na Fazenda Pacheco, distante 10 km da sede do município de Barra do Mendes, o Cangaceiro Corisco e sua mulher Dadá.
Corisco, Dadá, Rio Branco, Florência e a menina Zefinha, chegaram na Fazenda do Velho Zé Pacheco, dia 23 de maio, uma quinta-feira e nessa mesma noite faleceu Leogera, filha do dono da casa.

Na sexta-feira, dia 24, Corisco e Dadá acompanharam o cortejo fúnebre até a Vila de Barra do Mendes, onde Leogera foi sepultada no “Cemitério Novo”.

No sábado, dia 25, Corisco, que estava arranchado na casa de farinha da propriedade, encomenda a Zé Antonio Pacheco, um homem, já de 41 anos de idade, e não um rapaz como contam, que lhe trouxesse da feira livre do Arraial de Barro Alto, os mantimentos necessários para seguirem viagem, pois dizia ele que eram romeiros com destino a Bom Jesus da Lapa. Acontece que no Barro Alto, Zé Antonio se depara com a volante do Tenente Zé Rufino, que indaga acerca dos “romeiros, e ao receber informação precisa de onde estavam, intimida Zé Antonio e outros a o levarem a dita localidade. Já chega atirando, sem dar chance de fuga. Dadá é baleada no pé e Corisco alvejado por uma saraivada de tiros, ficando imobilizado no local.


 Corisco agoniza gravemente ferido.

Não morreu na hora. O outro casal, Rio Branco e Florência, estavam na Lagoa do Soldado lavando roupa, por isso ao ouvirem a “pipoca” aproveitam a distância e fogem, indo parar em...

A volante leva Corisco e Dadá, mas o cangaceiro morre na estrada e é sepultado em Miguel Calmon. Dadá é operada e levada para Salvador, onde morreu já idosa.

Durante muito tempo, se ouviu muitas histórias acerca da permanência de Corisco em Barra do Mendes, o que na verdade não passam de invencionices do nosso povo sertanejo. Ora, se eles não ficaram nem 72 horas por aqui, como daria tempo para tantas aventuras contadas? E como fugitivos, o que mais queriam eram garantir ao máximo o anonimato, dariam tanta chance para estarem em evidência?


O certo é que, em terras de Barra do Mendes, teve fim um dos mais avultados movimentos do nordeste brasileiro, O CANGAÇO. Aqui tombou o vingador de Lampião, o Diabo Loiro.
No entanto, não obstante a importância do fato, o local onde tudo isso aconteceu, a Fazenda do Velho Zé Pacheco, continua lá, sem nenhum marco, sem nenhuma identificação. Não existe mais vestígio algum da casa de farinha. Os atuais donos da propriedade, uma neta do Velho Zé Pacheco e seu esposo, sempre recebem muito bem as pessoas que lá vão em busca de conhecer o local, mas nada mais podem fazer além disso.

 Um retrato artístico de José Pacheco

Ao longo desses 75 anos, nada fora feito por nenhuma esfera governamental afim de preservar e de garantir as futuras gerações o direito ao acesso daquilo que lhe é garantido por Lei.
Nossa história carece de mais estudo, merece mais atenção!
Liandro Antiques

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Mestre Napoleão Tavares Neves

O médico que conta histórias

 Por Pedro Philippe • 21 de novembro de 2016
 Fotos: Samuel Macedo

Aos [89] anos, Napoleão Tavares Neves cultiva uma memória impecável, um currículo extenso e mil histórias de encantar. Autor de livros sobre o cangaço, cronista talentoso e memorialista por vocação, ele foi também um dos primeiros médicos a se estabelecer em Barbalha, apadrinhado por Pio e Leão Sampaio, que lhe ensinaram que Medicina se faz com o coração. Para a CARIRI, Napoleão resgatou relatos que a história oficial ainda desconhece e que lhe foram contadas pelo povo simples do sertão, gente que pediu a bença a Padre Cícero e que olhou nos olhos de Lampião.




“Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo…”, Socorro Neves interrompe o silêncio mal o carro sai de Barbalha, recitando todo o Salmo 90. Segurando as contas do terço entre os dedos, ela reza por uma viagem segura ao longo dos 137 km até Porteiras, enquanto o marido, Napoleão Tavares Neves, leva no colo um estojo com estetoscópio e prontuário e fala com empolgação sobre o que vê na paisagem já seca de agosto. “Aquele é o ponto mais extremo do sul da Chapada do Araripe”, ele ensina.

Depois se vira para o banco de trás e pergunta, apontando mais ou menos ao leste:

“Já foi em Missão Nova? Todo mundo acha que a primeira igreja do Cariri é a Sé do Crato, mas é uma que foi construída pelos capuchinhos bem ali”. Já chegando ao destino, o doutor mostra um lugar no horizonte: “Ali nas Guaríbas morava Chico Chicote. Sabe a história de Chico Chicote? A manhã em que a tropa do Tenente Zé Bezerra o atacou, em 1927, foi uma verdadeira epopeia nesse sertão”.

O rosário de Socorro durou a distância entre Missão Velha e Brejo Santo, mas a aula de geografia e história com Napoleão, se deixar, dura um dia inteiro. Naquela manhã de domingo, ele visitava as irmãs, Ranilda e Romilda, no distrito do Saco, na casa onde seu pai construiu um dos oito engenhos de rapadura que adoçaram a economia de Porteiras, quando este ainda era um distrito de Jardim. Porteiras tornou-se um município independente, depois veio a ser rebaixado novamente a distrito, ligando-se à cidade de Brejo Santo até se emancipar de vez, em 1953. O sítio foi basicamente batizado pela própria Chapada do Araripe, que o envolve como em um saco – visto de cima, é como se tivessem comido a Chapada em uma dentada. A casa de Joaquim Neves e Maria Tavares, pais de Napoleão, foi erguida justamente no recôndito desse U de 900 metros de altura, um semicírculo de cerca de 20km de comprimento, oito bocas d’água e uma imensidão verde, resistente às mais duras secas.

Do paraíso onde Napoleão passou os primeiros anos de sua infância ainda se avista, a duas léguas, a casa de Manoel Rosendo, seu avô materno, conhecido como Né Rosendo, para onde o menino corria todas as manhãs, montado em um cavalo de pau. Agora octogenário, Napoleão apoia uma bengala na mão e, na outra, carrega seu kit médico, aguardando a oportunidade de realizar uma consulta. Nem o chão entre as duas casas é mais o mesmo, já que a erosão e as chuvas torrenciais que desceram da serra nesse século que se passou criaram morros na área onde antes pastavam 800 cabeças de gado e existia uma plantação de cana-de-açúcar que era moída para mais de 1.500 engenhos do Cariri.

Toda sabedoria do mundo

Quando deu à luz Napoleão, no dia 17 de setembro de 1930, Maria já sofria há três dias as dores do parto. “Mas, também… Com uma cabeça grande dessas!”, diz o doutor mostrando o chapéu número 60, feito sob medida, e caçoando de si mesmo. O parto difícil foi feito por Pio Sampaio, médico que anos depois trabalharia com o menino que ajudou a pôr no mundo. Napoleão nasceu na fazenda do avô paterno, o Coronel Napoleão Franco, no Sítio Belo Horizonte, em Jardim, quando a cidade era só um curto trecho que começava na ponte sobre o Rio das Piabas e acabava na Rua da Baixa.

Jardim e Porteiras são cidades vizinhas, separadas pela serra alta, por onde a estrada faz o longo contorno que Napoleão percorria a cavalo. Nos anos em que viveu aos pés da Chapada, ele brincava de correr entre as caldeiras do engenho e de acompanhar os vaqueiros na lida. A convivência com os sertanejos que trabalhavam no Saco marcou a personalidade do pequeno Napoleão, impressionado com as histórias do cangaço, que para sempre assustariam sua mente de menino e, mais tarde, formariam o historiador que ele viria a ser.


 
 No sítio Saco com as irmãs, Romilda e Ranilda.

Montado em seu cavalo, ele fingia ser vaqueiro também, assistia aos aboios e pegas de boi, levava as reses para pastar e comia o típico almoço do sertanejo: farinha, rapadura e carne assada. “A carne do alforje é a mais gostosa do mundo!”, ele diz com intensidade, quase gritando, e explica o segredo: o sal impregnado no alforje sujo é o que dá o sabor, muito melhor do que a carne da cozinha, com o sal semeado. Deitados na bagaceira do engenho, os trabalhadores do Saco descansavam, admirando o céu estrelado, e aí então “a conversa truava até uma hora da manhã”, ele recorda. Eram pelejas de cangaceiros, estórias de trancoso e até aulas de astrologia.

As falas mais marcantes daquele tempo vieram de Antônio Farosa, um velho caboclo que parecia possuir toda a sabedoria do mundo. Sobre as estrelas cadentes, ele alertava a Napoleão: se aquela estrela bater em outra, o mundo se acaba. “E o que é que eu faço?”, ele perguntava. “Você reza: Deus te guie, Deus te guie, Deus te guie!”, Farosa ensinava a evitar uma hecatombe. “Eu ficava morrendo de medo, pensando: ‘eita rebuliço! Se ela bater e o mundo acabar, eu tô lascado!”, Napoleão ri. Mas nem só de peripécias vivia o velho sábio. Ele passou para Napoleão todo o conhecimento que tinha do Cariri – mística, natureza e cangaço.

O país das almas

“O Saco é o país das almas. Lá todo mundo vê alma”, Napoleão explica antes de contar a mais estranha de todas as histórias que ele presenciou, “A única vez que eu vi darem uma surra num defunto foi lá”. O fato aconteceu enquanto ele acompanhava o carregamento do corpo de um homem que morreu empurrando lenha no talhado do engenho. “Eles vinham descendo com o defunto em uma rede, até que um deles reclamou: ‘o defunto tá pesaaando’. Aí o mais sabido gritou: ‘Para, para, para! Isso é porque o diabo não quer que a gente leve ele pra igreja. Aí se escancha em cima da rede e faz pesar’. Eu fiquei todo arrepiado quando ele disse isso. Depois entrou no mato, tirou um galho de pau e deu uma pisa no morto. Enquanto ele dava, os outros descansaram”, contou. Quando testaram o efeito da surra, alguém elogiou: “Ah, agora tá manêro.

Aos 12 anos, acompanhando o aboio de 200 reses de uma fazenda a outra, Napoleão viu outro acontecimento, no mínimo mágico, digno de passagem em livro de Guimarães Rosa. A caravana se deparou com a caveira de um boi morto na estrada e, em vez de seguir caminho, todas os bois se puseram em torno do corpo do bicho e choraram. “Uma coisa que eu nunca vi na minha vida. A coisa mais linda. Os bois cavando em torno do irmão e urrando. Todo o gado, sem faltar um. Os vaqueiros então tiraram o chapéu, puseram no peito e baixaram a cabeça”. Maravilhado com o Cariri, o menino Napoleão começou a desconfiar que havia muita história a ser contada. Ele então adquiriu os hábitos que definiram sua personalidade e serviram para resgatar memórias dos caririenses: ele aprendeu a perguntar e a ouvir. Em sua biblioteca, uma estante que vai do chão ao teto guarda quase duas mil crônicas que já foram lidas em rádios de Barbalha e Crato, contando o que ele escutou ou viu em seus 89 anos de vida.



Se Napoleão não conseguia dormir, amedrontado pelos cangaceiros, não haveria como fugir: a sua avó materna, Ana Pereira Neves, a Donana, foi madrinha de Luiz Padre, o famoso cangaceiro de Serra Talhada. Para completar, o Saco era passagem de quem ia para Juazeiro do Norte através da Chapada. O caminho de Lampião no Cariri era sempre o mesmo: ele entrava por Macapá (atual Jati), ia direto para a Fazenda Piçarra (onde morava o amigo Antônio Teixeira Leite), subia a serra pela Ladeira da Salva Terra (entre Brejo Santo e Porteiras, onde Napoleão morava), até chegar na Serra do Mato (entre Barbalha e Missão Velha). Para entender a peregrinação do rei do cangaço e seus cabras, Napoleão recorria ao mapa sempre que ouvia as histórias da avó. “Donana me contava muita coisa e eu fui gravando tudo na cabeça”, recorda. Devota do Padre Cícero, ela se comunicava com o sacerdote por cartas. Uma correspondência em particular, Napoleão se recorda. Donana escreveu se lamentando: “Meu padrim, não posso subir ladeira, que me sinto cansada”. Ao que Cícero respondeu: “Isso é anemia. Vá em Porteiras e compre ferro em pó”. O doutor pondera: “Ele era muito prático, muito inteligente – pra a época e pra onde vivíamos”.

 A terra encantada do Saco, em Porteiras, 
onde Napoleão viveu a infância.

No caminho de Lampião

Quatro anos antes de Napoleão nascer, Lampião passou pela casa de Né Rosendo pedindo para deixar sua montaria descansando e pegar emprestados oito cavalos, para chegar bem apresentado em Juazeiro do Norte. Obviamente, Manoel não negou. Pediu para o filho Rosendo Miranda, então com oito anos, ir ao curral buscar os bichos para o cangaceiro. Esperto, o menino tentou uma façanha arriscada: escondeu os cavalos que ele mais gostava e trouxe oito burros de cambito, que Lampião aceitou. A cozinheira da casa de Né, Antônia Lúcia, contou a Napoleão outra passagem de Lampião pelo Saco: quatro de seus cabras se juntaram ao temido Horácio Grande para roubarem a fazenda. Antônia e Manoel, armados com os dois únicos rifles da casa, colocaram os homens para correr. José Roque, também morador do avô, contou a ele que, em 1927, andando pelo meio do mato, entre Porteiras e Jardim, foi surpreendido pelo bando de Lampião. Roque só conseguiu fugir quando começou um tiroteio entre os cangaceiros e policiais que apareceram de repente.

Em 1938, Lampião morreu em Sergipe enquanto Napoleão acompanhava tudo arrastando o dedo indicador pelo mapa do Nordeste e ouvindo as narrações através do único rádio de Porteiras – o da sua casa. “Eu soube pela voz de João Ramos, da rádio PRE9, que Lampião tinha morrido na grota dos Angicos”, recorda, com uma memória espetacular. No ano seguinte, forçado a largar as brincadeiras no canavial e as viagens com os vaqueiros, Napoleão se mudou para Jardim, a fim de estudar. A tia Beatriz Neves, professora normalista na cidade, preferiu educar o garoto em sua casa, em vez de mandá-lo para a escola. Nos anos que se seguiram, Napoleão foi alfabetizado, se preparou para o exame de admissão no ginásio e acompanhou o desenrolar da II Guerra Mundial pelo rádio, correndo sempre para o mapa múndi. Foi quando descobriu que o mundo era maior do que o vale encantado do Saco.

Aprovado no exame de admissão no Colégio Diocesano, ele se mudou para o Crato, de onde voltava a cada 15 dias. O velho Farosa ficou sendo o portador que o acompanhava no trajeto a cavalo. Saindo do Saco às 5 horas da manhã, os dois chegavam no Crato às 17h. Era um dia inteiro de cavalgada e muita história, enquanto o caboclo sábio ia deixando seu conhecimento com o amigo ainda adolescente. Em um desses dias, descansando na mata em Barbalha, Napoleão viu um morro com cinco cruzes. “O que é isso, Farosa? É um cemitério?”, ele perguntou. “Não. Aí estão enterrados os Fuzilados do Leitão”, explicou onde estavam os corpos de Lua Branca e outros quatro homens supostamente envolvidos com o cangaço, fuzilados em 1928. Lua Branca era o último dos irmãos cangaceiros de Barbalha que ficaram conhecidos com Os Marcelinos. Bom de Veras e João 22 já haviam sido assassinados, sobrando apenas o mais novo deles. Quando a Associação Pró-Memória de Barbalha quis reconstituir o local onde os fuzilados estão sepultados, Napoleão foi a única pessoa a saber onde estavam.

A verdadeira medicina

Nos anos entre Jardim e o Saco, Napoleão sentiu-se inspirado pelo trabalho do médico que o pôs no mundo, o barbalhense Pio Sampaio. “Desde criança, eu sabia que era aquilo que eu queria”, ele conta. “Eu gostava de tudo relacionado ao trabalho do médico, sobretudo o de atender a quem não podia pagar. Os exemplos que eu tinha eram daqui de Barbalha: Dr. Pio, Dr. Leão e Dr. Lírio Callou. Eles atendiam quem tinha dinheiro e quem não tinha. Aquilo me chamou a atenção e eu dizia comigo: ‘isso que é Medicina!”.

Formado em 1958 pela Fundação de Ensino Superior de Pernambuco, atual Universidade de Pernambuco, Napoleão encontrou a Medicina já em avanço no Cariri. O Crato tinha o Hospital São Francisco desde 1936 e, em 1955, Juazeiro ganhou o Hospital São Lucas. Fundado pelo bispo Dom Quintino Rodrigues, o São Francisco surgiu para tratar os acometidos pela peste negra (ou bubônica), enquanto o São Lucas, dirigido pela Sociedade São Francisco das Chagas, atendia com grandes médicos da época, lembrados até hoje, como Mozart Cardoso, Mário Malzoni e Mauro Sampaio, filho de Leão Sampaio, deputado federal desde 1933, responsável por trazer diversos recursos para o hospital.

“Do mesmo jeito que vinham atrás do Padre Cícero, as pessoas vinham de todos os lugares para se receitar com Pio e Leão Sampaio”, Napoleão conta. “Os romeiros iam para o Juazeiro e passavam por Barbalha. Depois voltavam pra terra deles falando que tinham se operado de graça, aí enchia de gente aqui”. Por muito tempo, Leão foi o único oftalmologista do interior do Nordeste, especializado em cirurgias de catarata. “Quando cheguei em Barbalha, eles estavam saindo”, ele lembra de quando os médicos da família Sampaio começaram a carreira política.

Napoleão morou por um tempo na casa de Edmundo Sá Sampaio, um primo distante, e acabou se apaixonando pela filha deste, Socorro. De acordo com os costumes da época, o rapaz saiu da casa para pedir a moça em casamento. Foi o pai de Socorro quem ajudou Napoleão a montar sua primeira clínica em Barbalha, onde o veterano Pio Sampaio atendia sempre que estava na cidade. No último dia em que Pio ficou sozinho no escritório do amigo, Napoleão foi interpelado por uma paciente, que reclamou: “Doutor Pio hoje me receitou, mas passou meia hora com a mão na testa, pensando. Tenho certeza que era escutando os santos para dar o diagnóstico”. “Eu contei a ele e ele riu”, Napoleão recorda, “E depois disse: ‘tome aqui a chave do seu consultório! Eu não venho aqui mais é nunca! Eu tô passando meia hora pra lembrar os nomes dos comprimidos”. Perguntado se Pio e Leão eram bons no que faziam, Napoleão responde sério: “Bons? Essa palavra não traduz o que eles eram”.

 Napoleão e Socorro
Não tem doente que escape

Seguindo os passos de Leão e Pio, Napoleão atendia em seu consultório de graça, sem nunca conseguir fazer o negócio lucrar. Por 33 anos, trabalhou no Sandu, em Juazeiro do Norte, concursado pelo Instituto Nacional da Previdência Social (Inamps), que mais tarde evoluiu para o atual SUS. Em 1970, foi inaugurado o projeto do hospital capitaneado pelo amigo Lyrio Callou e concluído pelas freiras Irmãs Beneditinas. Era o Hospital Maternidade São Vicente de Paulo, hoje o principal do Cariri, onde Napoleão trabalhou como diretor até ser convidado pela prefeitura para ajudar na atenção básica de Barbalha.

Já passando dos 70 anos de idade, o médico não havia perdido o ânimo pelo trabalho e nem a paixão pelo consultório. Ele labutou oito anos no Posto de Saúde das Malvinas, bairro periférico da cidade. Enquanto a maioria dos seus colegas atendia 20 pacientes por dia, ele chegava a receitar quase o dobro – até que, no Ministério da Saúde, estranharam que um único PSF tivesse atendido 60 mil pessoas em oito anos. A fiscalização que foi até as Malvinas viu que o doutor simplesmente cumpria os horários e não mandava nenhum morador de volta sem atendimento e medicação. Não faltavam prontuários para atestar a veracidade dos números. “Por que o senhor faz isso?”, um deles teria perguntado. “Porque tá aqui”, ele respondeu, batendo no peito, na altura do coração. “Nasci pra isso, então eu faço”.

Sobre os médicos que observou durante a juventude, ele resume: “Via de regra, eram sempre pessoas boas que tinham inclinação natural pra fazer o bem. Então a faculdade só fazia aprimorar”. E isso mudou? “Mudou! Mudou muito, mas muito mesmo. Hoje qualquer um que seja inteligente, tendo ou não tendo vocação pra Medicina, entra em uma faculdade. Aprende a teoria e depois se adapta. Hoje é difícil encontrar um médico que trabalhe por amor”, considera. “Mas aqui há duas faculdades de Medicina, soltando mais de 40 médicos no Cariri a cada semestre. Isso é muito bom. Não tem doente que escape!”.

 

Crônicas, filmes e relatos

Da varanda de sua casa, em uma tarde de segunda-feira, acompanhado da esposa Socorro e da filha mais velha, Jácia Maria, o médico com verve de historiador recebeu a CARIRI Revista. Jácia e suas duas irmãs, Raissa e Miria, se tornaram médicas também, e todas elas se casaram com médicos. Jácia é pediatra do Hospital São Vicente e, como o pai, não sai sem deixar um paciente sem atendimento. Pelas suas contas, em seus 10 anos no HMSVP, ela deve ter olhado para cerca de 60 mil crianças. Napoleão tenta explicar: “Dá uma satisfação íntima que a gente não sabe dizer o que é. Eu mesmo não sei”.

A paixão por ouvir o paciente dizer o que sente, pensar na solução e indicar o remédio acabou casando com a vontade de escutar também histórias como as de Donana e Farosa. Napoleão então criou o hábito de conversar com os mais velhos em seu consultório, tentando puxar relatos orais de fatos do Cariri. Raimundo Gomes de Figueiredo foi um desses, que chegou com verdadeiras joias: contou tudo a respeito de Júlio Pereira, o caririense que comprava munição para Lampião, e sobre Benjamin Abrahão Botto. As pesquisas do médico a respeito de Abrahão, secretário do Padre Cícero e fotógrafo de Lampião, serviram para Frederico Pernambucano de Mello preparar o roteiro do filme Baile Perfumado (1999).

O material que chegava na mesa do doutor também encheu a estante de crônicas e renderam três livros: Cariri – Cangaço, Coiteiros e Adjacências, Barbalha Cultural e Primeiro Templo Católico do Cariri. Por ser fonte recorrente para os alunos do curso de História da Universidade Regional do Cariri e ter seu nome citado em 3% dos trabalhos apresentados e publicados ali, Napoleão Tavares Neves recebeu o título de Doutor Honoris Causa da instituição.

“Minha filha, acho que eu tô louco”, ele desabafou com Jácia, no tempo em que ainda trabalhava, “Quando tá de tardezinha, eu quero que anoiteça, pra chegar logo a manhã e eu ir pro hospital, receitar”. No ano passado, Napoleão completou 58 anos em exercício, de volta ao ambulatório do Hospital São Vicente. Aos 85 anos de idade, parou de trabalhar porque as filhas o obrigaram a cuidar da própria saúde. “A gente já estava querendo que ele parasse e ele dizia que não. Aí a gente falou com a Irmã Ideltraut (diretora do HMSVP) pra ele ficar só meio expediente. Mas numa manhã ele atendia 40! Contrataram uma pessoa só para limitar o número de pacientes dele”, Jácia conta sem que ele ouça. Depois que a sala do doutor ficou vazia, volta e meia ainda aparece algum velhinho procurando pelo médico. “E agora? Com quem é que eu vou conversar?”, um deles saiu de lá se lamentando. “O que será de nós?”, outra reclamou.

“Era bom demais, rapaz!”, ele lembra de quando podia ir consultar, falando com uma satisfação tão grande que é como se descrevesse um hobby. Talvez de fato fosse. No domingo em que visitava o Saco, a única chance que Dr. Napoleão teve de atender um paciente foi quando este repórter se queixou de uma dor. “Onde é essa dor? Mostre aí. Na boca do estômago? Pare de tomar tanto café”, ele sentenciou.

Apoiado na bengala com os dois punhos, Napoleão admira a vista da Chapada do Araripe e, questionado se voltaria a trabalhar se pudesse, ele se vira e responde com a rapidez de quem acabou de ser acordado: “Volto! Eu já disse a Jácia que estou disposto”. Dificilmente Socorro e as filhas vão deixar. O estojo com o bloco do prontuário em nome de Dr. Napoleão Tavares Neves continua com as folhas em branco, o estetoscópio e o aparelho de pressão estão enrolados e, contra a sua vontade, o médico se aposenta.

 


Um pequeno grande homem
por Tadeu Alencar

“Quando conheci Napoleão Tavares Neves, ele não era nem o médico nem o homem. Era uma página vibrante da crônica da Rádio Salamanca, um Rubem Braga do Cariri. Era o ano de 1983. Eu tinha vinte anos. Ele, nascido no alvorecer da revolução de 30 e com o espocar dos seus disparos, tinha 53 anos, a idade que tenho hoje. Eu me iniciava na terra de Santo Antônio, onde viria a encontrar a eleita dos meus dias e ele já era uma autarquia, uma instituição. Tinha uma sabedoria que não terei jamais, mesmo com o passar galopante dos anos. Depois do cronista agudo sobre o cotidiano de sua gente, em especial de sua Barbalha, de quem foi o maior bardo, passei a ver aquela roupa branca com a sua sacralidade hipocrática, um médico da gente simples do sertão, à moda de um Leão Sampaio, de quem decerto era invulgar seguidor. Era culto, ilustrado, generoso, certeiro no diagnóstico, conhecendo como ninguém a alma do homem simples, cioso do papel de médico à moda antiga, dos partos em casa, da presença de todas as horas. Médico, psicólogo e catequista. No entanto, mais que o cronista, que o médico amoroso pelo seu ofício, o que me fez cativo para sempre do seu encanto foi o talento de historiador incansável, em sua curiosidade de menino travesso, ávido por tudo aprender. Napoleão era um João Brígido alimentado no bagaço da cana da Pedra Branca. Foi meu preceptor na arte da memória e na saga dos sertões adustos, da genealogia inebriante, dos jagunços de alma penitente, do Pe. Cícero, de Ibiapina, Floro e Bárbara – que, em sua extensão heroica, me foi apresentada por ele. Foi meu mais provocativo interlocutor em missivas que me faziam arregalar os olhos e abrir a mente. No meio da caatinga do caboclo, me mostrou o ouro que há nos veios da Chapada do Araripe. Um pequeno grande homem. Dos maiores que conheci”.

Napoleão pelos seus

“Hoje trilhando o árduo caminho da Medicina, eu imagino o quanto meu pai deixou de lado para que nada nos faltasse. Guardo lembranças de sua atenção, carinho e amor. Lembranças de noites de febre, com ele ajoelhado ao nosso lado. Lembranças do último beijo na hora de dormir e o apagar da luz do quarto. Lembranças do ajeitar do cobertor diariamente”.

Miria Neves Sá, filha, endocrinologista.

“Meu pai é um homem de muitas virtudes, mas duas delas para mim se sobressaem. A primeira é a gratidão. Sempre o vi cuidar com muito amor de quem zelou por ele ou por alguém de sua família. A segunda virtude é a valorização da minha mãe, Socorro. Isso para mim é extremamente belo e engrandecedor”.

Raissa Neves Fernandes, filha, reumatologista.
“Meu pai é um modelo de integridade, modelo de filho, modelo de amigo, modelo de médico. Meu referencial de bom senso, de fazer grandes e boas escolhas na vida. Meu referencial em como ser dono do seu dinheiro e não ser escravo dele. Olho pra ele com alegria, orgulho e felicidade de ter tido o privilégio de ser sua filha. Não é à toa que escolhi ser médica como ele”.

Jácia Maria Neves Coelho, filha, pediatra.

“Napoleão Tavares Neves, aos 86 anos, é detentor de uma bagagem cultural inesgotável, e transborda conhecimentos de história e geografia da rica e fecunda Chapada do Araripe. Dedicou grande parte destes 86 anos à Medicina voltada aos mais humildes, tornando-se uma referência de como deve ser um médico”.

Jairo Sá. Genro. cirurgião plástico.
 “Forjado na doçura das gamelas dos engenhos de rapadura e criado sob a beleza dolente dos aboios dos vaqueiros, Napoleão traz um legado de amor ao Cariri. Verdadeiro sacerdote da arte de Hipócrates, ele é um repositório vivo da História recente do Ceará, guardião incansável da sua memória e defensor intransigente da majestosa Chapada do Araripe”.

Leandro Cardoso Fernando, genro, cardiologista

Tudo  começou com Bonaparte


Napoleão Tavares Neves tem teses singulares para diversos acontecimentos. O comportamento pacífico de Lampião em relação ao Cariri, que muitos atribuem ao suposto respeito ao Padre Cícero, ele diz ter sido simplesmente estratégia do cangaceiro para não se indispor na região onde era obrigado a passar com frequência. Sobre o declínio dos engenhos de cana-de-açúcar, ele explica: a praga do bicudo destruiu as plantações de algodão do Rio Grande do Norte, da Paraíba e do Ceará, deslocando os trabalhadores da lavoura, principais consumidores da rapadura. Para o surgimento de um polo de saúde no Crajubar, ele tem uma teoria original.

Tudo começou com Napoleão Bonaparte. O militar francês invadiu Portugal em 1807, forçando a família real a fugir para o Brasil no ano seguinte. Com a vinda da corte para a colônia, muitos avanços foram empreendidos, entre eles a criação das Escolas Médicas de Salvador e Rio de Janeiro, por onde passou o barbalhense Leão Sampaio, formado em 1922, pioneiro em fazer o Cariri se tornar conhecido pelo atendimento médico. O irmão, Pio Sampaio, formou-se dois anos depois e, em 1930, estava atendendo em Jardim, onde fez o parto de Maria Tavares Neves, mãe de Napoleão.

Publicado originalmente na Revista Cariri

terça-feira, 21 de maio de 2019

Evento em Salvador, BA

Lançamento do Doc 'Assim era Dadá'

O Centro de Estudos Euclydes da Cunha - CEEC tem o grande prazer de anunciar o lançamento do nosso mais novo filme-documentário do professor e pesquisador Manoel Neto “Assim era Dadá – A vida pós cangaço de Sérgia da Silva Chagas.
 

O evento terá entrada franca e acontecerá no próximo dia 23 de maio de 2019, ás 19h, na Sala Walter da Silveira, Rua General Labatut, no prédio da Biblioteca Central da Bahia.



segunda-feira, 20 de maio de 2019

Opinião de Câmara Cascudo

Cangaceiro, vítima da Justiça

“Aqui no Nordeste brasileiro nós sabemos que o cangaceiro não é uma formação espontânea do ambiente. Nem sobre ele influi a força decantadamente irresistível do fato econômico. Nas épocas de seca a fauna terrível prolifera, mas nenhum componente é criminoso primário. Os bandos têm sua gênese em reincidentes, trânsfugas ou evadidos. Nunca a sugestão criminosa levou um sertanejo ao cangaço. É cangaceiro o já criminoso. E criminoso de morte.
 
 Xilogravura de Cláudia Nen

Depois de tanta discussão explicativa fica-se sem saber de que elementos estranhos sai o tipo hediondo, que outrora inda conservava o tradicional “panache” do heroísmo pessoal, do respeito às mulheres e aos velhos e da solidariedade instintiva à bravura. Nunca um cangaceiro digno desse nome matou um homem reconhecidamente bravo. Quase sempre ficavam amigos ou mutuamente se distanciavam.

Mas qual seria o fator psicológico na formação do cangaceiro? Para mim é a falta de Justiça, que no Brasil é corolário político.

A vindita pessoal assume as formas sedutoras dum direito inalienável e sagrado. Impossível fazer crer a um sertanejo que o tiro com que ele abateu o assassino de seu pai deve levá-lo à cadeia e ao júri subsequente. Julga inicialmente um desrespeito a um movimento instintivamente lógico e que a Lei só deveria amparar e defender. Daí em diante surgirá o cangaceiro vítima de sua mentalidade. Ele descende em linha reta das “vendettas” e da pena do Talião.

Este é o aspecto raro. O comum é o sertanejo matar o assassino que ficou impune e bazofiador. Neste particular a ideia de prisão é para ele insuportável e inadmissível. Surge, fatalmente, o cangaceiro.
Defensores de Mossoró em 13 de junho de 1927.

A desafronta constitui a característica inicial do “bravi”. Numa alta proporção de oitenta por cento o cangaceiro do Nordeste brasileiro apareceu num ato de vingança. E são estes justamente os grandes nomes que o sertão celebra num indisfarçado orgulho que não dista da possível imitação.


Adolfo Rosa quis uma prima e o tio mandou prendê-lo num tronco. Dois dias depois o tio estava morto e surgia Adolfo Velho Rosa Meia Noite, chefe de bando, invencível e afoito. É uma das figuras mais representativas do velho cangaceiro típico, generoso e cavalheiresco. Jesuíno Brilhante tornou-se cangaceiro defendendo os irmãos contra a Família Limão. Baixo, loiro, afável, risonho, Jesuíno é uma lembrança cada vez mais simpática para o sertão. E sua morte é guardada como a dum guerreiro:

Jesuíno já morreu

Acabou-se o valentão.

Morreu no campo da honra

Sem se entregar à prisão.

Antônio Silvino matou o que lhe matara o pai. Jesuíno, no ódio que tinha da Família Limão, declarou guerra a todos os limoeiros que encontrava. Destruía-os totalmente, mastigando os limões entre caretas vitoriosas. Antônio Silvino “acabou a raça” dos assassinos do pai.

O horrendo Rio Preto, hercúleo e feroz, não seria abatido se não fosse vingança doméstica. Os Leites, ajudados por meu tio Antônio Justino, fizeram guerra de morte ao moleque demoníaco. Se a Justiça chamasse Leite ou o negro Romão (escravo alforriado por meu tio, e que matou Benedito, o herdeiro de Rio Preto) às contas, estes se tornariam infalivelmente cangaceiros.

Não é fenômeno peculiar à zona nordestina do Brasil. Em São Paulo há o caso do jovem Aníbal Vieira. Quatro empregados duma fazenda violentaram lhe uma irmã. Aníbal não “foi à Justiça”, que por retarda e tardonha desanima.

Armou-se com seu pai e matou dois dos violentadores. Os dois restantes fugiram para Mato Grosso. Aníbal viajou para Mato Grosso e matou-os. Julgou-se de contas saldadas. Fora um justiceiro. Mas a Justiça não entendeu desta forma. Mandou prender Aníbal. A tropa de polícia que o perseguia encontrou-se com ele em Três Lagoas. Aníbal fez frente à força militar. Feriu dois soldados e fugiu. Aí estará o movimento inicial dum Dioguinho.”


Fonte: Diário Nacional, São Paulo, 03 de junho de 1930.

Pesquei no essencial Tok de História

domingo, 19 de maio de 2019

GAROTO-PROPAGANDA

Lampião e as Pílulas do Dr. Ross

Diversos anúncios desde o surgimento da fama do maior cangaceiro que pisou as terras nordestinas, surgiram em jornais, revistas, rádios e televisão.

Quem não lembra aquele anúncio do tecido Tergal? E muitas outras encontramos. O que você diria desse comercial feito pela atriz Tânia Alves (Maria Bonita da minissérie global) relatando as benesses do remédio Ovariuteran como regulador dos “tempos difíceis” da mulher?

E que dizer de comerciais vendendo comida de restaurantes, inclusive um mexicano? Pois então… Lampião vende de tudo, óculos, colchões, animações para o Natal e até mesmo remédios, como aquele comercial para prisão de ventre, como aquele das 'Pílulas de Vida do Dr. Ross'.

 Chamarei a atenção para um anúncio bastante interessante, da referida pílula, para combater prisão de ventre e que usa o rei do cangaço como garoto-propaganda. Saiu na revista Boa-Nova de dezembro de 1933 e que dizia tal como está escrito:


 

“LAMPEÃO, pelo terror dos seus crimes, é o pavor dos sertanejos. O bandido que invade os lares, levando a toda parte a soffrimento e a morte, não ataca de frente, jogando a sua vida na luta leal. Esconde-se nas trevas, acoita-se nos barrancos, embuça-se nas grotas para de lá espalhar a destruirão e a morte. Também a prisão de ventre, aninhando-se sorrateiramente no corpo humano, provoca a explosão de males infinitos, pelo relaxamento do intestino. Para o combate ao banditismo de Lampeão a paiz arma os seus soldados adestrados. Para combater o prisão de ventre, OS PÍLULAS DE VIDA DO DR. ROSS, no dose de uma ou duas por noite, são as armas seguras, de effeitos infalliveis.”

Pesquei em Zé Cangaço

sábado, 18 de maio de 2019

Antônio Silvino

1907 - O ataque do cangaceiro a Barra de São Miguel, PB
No fim do século XIX e início do século XX o Brasil assistiu a emergência do fenômeno do cangaço, cujo expoente foi Lampião e seu bando. Todavia, na região da divisa entre Pernambuco e Paraíba o principal nome do cangaço foi o conhecido Antônio Silvino. Vejamos uma imagem do mesmo:
Antônio Silvino - Jornal do Commercio (1915)
Antônio Silvino e seu bando passaram diversas vezes pelo território do município de Barra de São Miguel- PB, como veremos nesta e em outras reportagens desta série. Contudo, o principal ataque ocorreu no dia 26 de janeiro de 1907, quando a Barra de São Miguel era ainda a Sede do município de Cabaceiras e possuía uma rentável mesa de rendas. 
A seguir, vejamos como a imprensa da época noticiou este ataque. Segue reportagem do Jornal A República de Natal - RN, que reproduz matéria do jornal paraibano A União.

Jornal A República (1907)

 Segue a transcrição literal do relato jornalístico:

Antonio Silvino


A ultima façanha


Sobre a ultima façanha de Antonio Silvino, o ataque da villa da Barra de S. Miguel, na Parahyba, lemos o seguinte, na ,:


Segundo informações fidedignas recebidas dessa villa sertaneja, eis o que se passou por ocasião da estada ali do bandido Antonio Silvino.


No dia 26 de janeiro, depois de 11 horas da noite, entrou o grupo formado de 13 cangaceiros, inclusive o chefe, na villa, onde não havia a menor noticia da sua aproximação. Cerca de uma hora antes, estiveram na casa do delegado de policia, cidadão Nicolau Vitalino Correia de Araujo, distante da villa um kilometro e obrigara o mesmo delegado a acompanha-lo e a servi-lhe de guia.


Ao entrar na villa, Antonio Silvino dirigiu-se a cada uma das residências das praças de policia, que em um número de três guarneciam a localidade e foi prendendo-as cada uma por uma vez. Tomou-lhes as armas e os fardamentos, e obrigou-as a acompanha-lo.


Presa e desarmada a ultima praça, dirigiu-se o facínora á casa de João Anastácio, ex-praça do Batalhão de Segurança, que a cerca de quatro annos sutentara fogo contra ele na povoação do Boqueirão.


A voz do delegado, prisioneiro de Antonio Silvino, João Anastacio abriu a porta, sendo subitamente amarrado pelo grupo e arrastado para a rua, onde recebeu grande numero de açoites e duas facadas.


Depois seguiu o grupo para a casa do capitão Manoel Henrique do Nascimento Araujo, escrivão da Mesa de Rendas, ao qual intimou a entregar todo o dinheiro existente na repartição, no que foi obedecido.


Assim passou ás mãos de Silvino a quantia de trezentos e tantos mil reis, único dinheiro existente na Mesa de Rendas porque o respectivo administrador major Deodato Pereira Borges, tinha vindo pouco antes á capital recolher a arrecadação do ultimo trimestre.


Os bandidos obrigaram o referido escrivão a abrir a repartição, onde se apoderaram de todos os livros, papeis e estampilhas que conduziram para a rua e queimaram completamente. Silvino recomendou então ao escrivão que da arrecadação que fizesse, guardasse-lhe cada mez 50$000, que ele viria ou mandaria buscar.


Foram d’ahi á casa do subdelegado de policia, Candido Casteliano dos Santos, contra quem Antonio Silvino estava prevenido, e que recebeu a exigência de um conto de réis, sob pena de ver incendiado o seu estabelecimento comercial.


O sr. Candido Casteliano respondeu que não dispunha de quantia tão elevada porque fizera pouco antes remessa para a praça do dinheiro apurado, pelo que Silvino aceitou a importância de 400$000, tirando porem fazendas no valor de 200$000.

Exigiu e recebeu 50$000 do cidadão Olyntho José de Vasconcelos, 1º suplente do Substituto do Juiz Seccional.


Mandou esbordoar uma praça do destacamento de nome Pedro Rodolpho, porque esta declarou que só se entregara sem resistência por ter sido sorprehendida.


Tudo se fez no maior silencio de modo que as pessoas, que se achavam agasalhadas no interior das casas não presentiam o que se passava na rua.


Antes de retirar-se, Antonio Silvino mandou bater na porta do tenente-coronel Manoel Melchiades Pereira Tejo, que até então ignorava o que se estava passando, e que despertando, abriu a porta.

D’elle exigiu Silvino café para si e seus companheiros no que foi satisfeito, retirando-se da villa ás 3 horas da madrugada.

Em breve apresentaremos os desdobramentos deste ataque de cangaceiros a Barra de São Miguel - PB.
João Paulo França, 06 de julho de 2017.

Fonte: 

Jornal A Republica. 13 de fevereiro de 1907, Natal. Ano 19, número 33
Jornal do Commercio, 02 de janeiro de 1915, Manaus. Ano 12, número 334
Pesquei em Memória BSM

quinta-feira, 16 de maio de 2019

Opinião

O verdadeiro herói de Angico

O escritor e jornalista Valdemar de Souza Lima,  (Foto) natural de Palmeira dos Índios, nos deixou um dos melhores estudos sobre o cangaço. O seu livro "O Cangaceiro Lampião e o IV Mandamento", lançado em 1977, traz informações detalhadas sobre as andanças do Rei do Cangaço e seu bando pelo Nordeste.

Até no prefácio do livro, que reproduzimos abaixo, encontramos informações importantes. Nele, o autor comenta sobre quem verdadeiramente conseguiu conduzir a Polícia Militar de Alagoas a cumprir o seu papel no combate ao cangaço. Valdemar de Souza Lima relata o papel destacado que teve o comandante Teodoreto Camargo do Nascimento, um nome pouco citado quando se conta a história do cerco a Angicos.

Nas próximas postagens, vamos reproduzir capítulos do livro com outras histórias sobre o cangaço. Agradecemos antecipadamente a Hugo Lima, filho de Valdemar, que nos cedeu o exemplar do livro e autorizou a publicação.

Duas palavras

Valdemar de Souza Lima

No ano de 1936 chegou em Maceió um rapaz moreno, alto e esbelto, natural de Sergipe — era capitão do Exército e se chamava Teodoreto Camargo do Nascimento. Tinha sido convidado pelo governador de Alagoas, professor Osman Loureiro, para comandar a Policia Militar do Estado.
Teodoreto Camargo do Nascimento chegou a Maceió como tenente do Exército e assumiu o comando da Polícia Militar.

Teodoreto Camargo do Nascimento chegou a Maceió como tenente do Exército e assumiu o comando da Polícia Militar.

De pronto se ficou sabendo que o órgão de segurança a cuja frente se colocara, passava por uma série de reformas, de vez que sua preocupação não se limitava a manter ou aumentar os efetivos da milícia, mas, sobretudo, pugnar pela indispensável qualidade deles. Talvez por isso o jovem comandante não conseguiu se transformar na moeda-de-vinte-patacas, que agrada a todos. Pelo contrário, passou a ser apontado como um homem arguto como poucos e extremamente duro, a ponto de descambar às vezes para a mordacidade, como recurso para se fazer mais facilmente compreendido. E o certo é que ninguém brincou com ele.


 Atravessávamos então uma fase verdadeiramente crítica. Convencido de que era mesmo “senhor e possuidor” do Nordeste semiárido, pois realmente, não tropeçava em obstáculos maiores para pousar onde queria, Lampião convertera aquilo numa ilimitada faixa de areia movediça, onde ninguém dispunha de um mínimo de confiança para arrumar sua magra economia primária e viver com relativa tranquilidade no seio de uma sociedade, ainda que obscura, organizada.

De posse dos elementos que julgou indispensáveis para dar um balanço em tão indesejável situação e após chancelar um plano estratégico que lhe parecera satisfatório, o novo comandante da Força Pública sugeriu ao governo a criação do 2° Batalhão da Polícia, com sede em Santana do Ipanema, cujo comando seria confiado ao major José Lucena de Albuquerque Maranhão, oficial reconhecidamente destemido e afeito ao combate à desordem na zona explosiva — e era assim de esperar que a partir daí o temível bandoleiro não contasse mais com as facilidades de praxe para cometer impunemente as suas tropelias.

Infelizmente essas avaliações otimistas e que oneravam extraordinariamente o orçamento estadual, não iriam acenar na prática com os frutos desejados. Nos últimos anos de sua tumultuosa existência, Lampião jamais se mostrara tão nocivo à nossa vida; enquanto isso, ao invés de reencontros decisivas das volantes com o seu bando, as medições constantes dos boletins não passavam de meras escaramuças.

Bando de Lampião em foto de Benjamin Abrahão


O coronel Teodoreto sentiu os riscos que afetavam a sua posição — embora não parecesse perceber os que pessoalmente corria, pois, eu mesmo, que nunca sequer troquei com ele um cumprimento, vi-o, por vezes, cruzando, quase sem escolta, a zona convulsionada, sujeito a cair de um instante para outro nas malhas da “gang” sanguinária — e evidentemente não iria contemporizar com uma colocação que se chocava com o seu temperamento e formação.

Chamou, portanto, Lucena a Maceió, visando identificar o dedo misterioso que incidia sobre o contexto e levava àquele resultado deplorável. É claro que ele não punha em dúvida a lealdade e competência do seu subordinado, mas precisava descobrir a causa da frustração e eliminá-la, custasse o que custasse. Cumpria restaurar a confiança das populações massacradas pelo cangaço, nas providências do governo, em última análise o responsável pela sua segurança.

Teodoreto não abriria mão a partir de agora de ação efetiva e ajustada, sob pena de apelar para medidas drásticas — e até arbitrárias — contra aqueles que fossem apanhados violando suas determinações. José Lucena revelou, no dia imediato, em casa de seu amigo Pedro Rodrigues Gaia, em Palmeira dos Índios, que saíra do encontro tão amargurado, que rumara dali para a Catedral, a fim de orar e pedir a Deus ânimo e luzes para se safar do sério embaraço em que se via metido.

E uma vez de volta a catinga, reuniu os comandantes de volantes, passou-lhes o ocorrido, frisando que não estava ali apenas como um emissário do seu chefe para fazer-lhes uma advertência, mas, na verdade como um executor inflexível de suas novas ordens. Menos de um mês após isso, Lampião tombava em Sergipe e o seu bando se desintegrava para sempre.

O tumulto que o extraordinário episódio motivou, desencadearia uma onda de publicidade como jamais imaginamos nos nossos mundos obscuros. Tudo agora a imprensa escrita e falada queria saber a respeito das figuras que, de uma forma ou de outra, tinham contribuído para aquele resultado. O comandante da Polícia não teve, porém, encontros com repórteres, segundo penso, pois, naquele instante seus cuidados se voltavam para um assunto mais humano e cristão, que era arrebanhar e cercar das necessárias garantias pessoais os remanescentes da quadrilha que se entregavam às autoridades — dando por essa forma o primeiro passo para sua recuperação. Eles eram irmãos nossos, reduzidos à mais extrema miséria — pelo rigor do meio-ambiente, pela seca, pelo analfabetismo e outras tantas mazelas que não vale repetir. E afinal, bem poucos entre os comparsas do terrível bandoleiro, preferiram prosseguir na senda do crime.

O general Teodoreto Camargo do Nascimento já não pertence mais ao número dos vivos. Pouco importa, para mim ele permanece como o artífice máximo do feito de Angicos — e mais do que isso: o homem escolhido pelo destino para vibrar o golpe de misericórdia no banditismo militante do Nordeste brasileiro. Este livro constitui, pois, o testemunho de minha veneração à sua memória.

Brasília, Setembro de 1977.