Por Sérgio Augusto de Souza Dantas*
Às vezes me pego pensando sobre possibilidades fáticas, critérios de lógica, metodologia histórica e coisas do gênero, principalmente quando o assunto é “cangaço” e a questão envolve seu principal protagonista, o 'Capitão' Virgulino Ferreira, o tristemente célebre “Lampião”.
Outro dia, por exemplo, lembrei-me de ouvir pela enésima vez a única entrevista que fiz com o Sr. Durval Rodrigues Rosa (ano de 2000), ex-prefeito de Poço Redondo/SE e um dos coiteiros de Lampião naquelas barrancas do rio São Francisco.
A conversa de Durval é desembaraçada, porém entremeada de gestos os mais diversos, como a ajudar a se compreender o que ele pretende contar.
Proseamos por mais de hora e meia.
A certa altura da conversa-entrevista, ele me diz o seguinte: "Na véspera do tiroteio, eu vi o tenente João Bezerra em Angico, jogando baralho com Lampião, Luís Pedro e mais outros cabras. Ele tinha ido ali deixar três sacos de munição encomendados por Lampião e ficara um pouco no coito, se distraindo no carteado”.
Recentemente eu ouvi mais uma vez a gravação da conversa e, inevitavelmente, não pude deixar de propor a mim mesmo algumas indagações, com intuito de esclarecer de uma vez dúvidas que rondam essa suposta visita do militar ao coito do cangaceiro. Creio que os confrades frequentadores deste ‘Blog’ poderão me ajudar a esclarecer algumas destas relevantes questões.
Senão, vejamos: A primeira é de ordem cronológica:
Qual seria a ‘véspera’ referida por Durval? - O dia 27 de julho de 1938, decerto. Ocorre, porém, que durante TODO ESSE DIA 27, o tenente Bezerra esteve à frente da intricada operação para atacar os cangaceiros na Grota do Angico.
É fato que quando o sargento Aniceto Rodrigues recebeu a informação do coiteiro Joca Bernardo, sobre a presença de Lampião na fazenda Angico, ainda não era meio dia. Aniceto se apressa, pois a notícia parece ‘quente’. De imediato, o militar telegrafa ao seu superior imediato, o já referido tenente Bezerra, e transmite a mensagem de forma ‘cifrada’, a fim de não levantar qualquer suspeita. Naquele fim de manhã, o oficial estaria com sua tropa estacionada em Pedra (hoje Delmiro Gouveia, alto sertão de Alagoas), descansando de uma ‘batida’ policial realizada em possíveis esconderijos de cangaceiros na região de Mata Grande.
Mantido o contato com o seu comandante, o sargento requisita um caminhão e parte de imediato até um local predeterminado por Bezerra, o sítio Riacho Seco, fincado entre a cidade de Piranhas e a antiga Vila de Pedra.
Muito bem.
Conversando, porém, com outras pessoas ligadas ao evento –como por exemplo, os cabos José Panta de Godoy e Antônio Vieira, além do sargento Elias Marques de Alencar - todos eles disseram que o tenente Bezerra estava em Pedra desde o dia 26 de julho e, o mais importante, 'dali não tinha saído para lugar nenhum, pois descansava da longa e extenuante operação realizada na região de Mata Grande'. Não só os soldados. Os Boletins Ordinários de Serviço da Polícia Militar de Alagoas, de ‘25’, ‘26’ e ‘27’ de julho de 1938, atestam a presença do tenente João Bezerra e do Aspirante Ferreira de Melo em Pedra, por ordem do comandante do Segundo Batalhão de Polícia, Coronel José Lucena de Albuquerque Maranhão. E agora, como ficamos?
Mas Durval fala que o tenente Bezerra esteve no coito, deixou balas e, de quebra, ainda jogou baralho com Lampião. Aí vem minha segunda dúvida:
Como Bezerra haveria feito isso? Teria ele o 'dom de desaparecer', igual ao que o sertanejo comum atribuía a Lampião?Poderia o tenente Bezerra ter saído de Pedra, atravessado o rio São Francisco, andado cerca de cinqüenta quilômetros, subido até a Grota do Angico, jogado baralho despreocupadamente e retornado ao local onde estava a tropa estava sem que ninguém notasse sua ausência? (1) (2).
Um comandante de volante, já oficial, passaria tão despercebido assim? - ora, para cumprir esse trajeto, Bezerra levaria algumas HORAS. De fato, se o militar estava contrabandeando munição, não viajaria pela antiga estrada entre Pedra e Piranhas. Do contrário, ele se movimentaria de maneira oculta, longe de ‘vistas curiosas’, por dentro da caatinga, o que aumentaria consideravelmente esse tempo de viagem. Alguém discorda desse ponto?
Uma terceira questão: Porque o militar levaria balas para Lampião, quando já sabia, naquele dia 27 DE JULHO, que teria que atacar o cangaceiro de ‘qualquer maneira e o mais breve possível’?
Imaginaria o tenente Bezerra, ao levar a munição ao famoso chefe de cangaço, em se suicidar e, ao mesmo tempo, submeter ao sacrifício os integrantes da tropa sob seu comando? - Penso que ventilar essa hipótese não seria nem um pouco inteligente. Vender bala ao adversário? – Beira o absurdo.
Pelo meu modesto entender, essa história toda é mais um fruto nascido da imaginação popular e do prazer mórbido, arraigado e cultural do brasileiro em denegrir instituições e pessoas.
Um mínimo de lógica nos faz chegar a conclusão que um comandante de tropa não desapareceria sem ser notado e, menos ainda, faria tão longo percurso SOZINHO, pois Durval Rosa não falava em outro militar acompanhando Bezerra em Angico. ESTAVA SÓ. Muito estranho, decerto!!
Alguém chama fatos assim de 'Mistérios'. Prefiro chamar de ‘criações’ ou de ‘fantasias’. A criação de um fato inexistente,que acaba, por indução e repetição contínua, resultando em sofisma ou em um silogismo viciado.
E essa história em torno do envolvimento de Bezerra com Lampião tem rendido.....aqui e ali ela volta à tona. O Sr. Durval Rosa, convenhamos, tinha as suas próprias razões para tentar implicar o oficial, pois a volante comandada por este, na fatídica madrugada de 28 DE JULHO, “exagerou no trato” para com ele e também para com seu irmão Pedro. Responsabilizar Bezerra como um dos fornecedores de munição para o capitão-cangaceiro seria uma forma “até mais ou menos justificada” de se vingar, posteriormente, do oficial e de seus comandados.
Mas, mesmo na atualidade, não são poucos os que encampam essa teoria e saem apregoando o disparate aos quatro ventos. E eu pergunto: porque atingir tanto a honra de um morto? Qual a grandeza que há nisso?
E mais um detalhe: eu já li inúmeros depoimentos de ex-cangaceiros e até mesmo já cheguei a entrevistar alguns deles nesta última década.
Os que falam sobre o assunto dão a entender que a munição usada pelo bando vinha por intermédio da própria da polícia. Ninguém disse uma mínima palavra que pudesse envolver poderosos Coronéis sertanejos.
Isso é razoavelmente recorrente nos depoimentos. Porque razão estes senhores foram sempre omitidos pelos cangaceiros? Seria falsa – ou mítica - a relação ‘coronel e cangaceiro’?
E eu lanço mais uma questão: Como essas balas seriam fornecidas pela polícia? Diversos combatentes militares (dentre os quais, Joaquim Góis, José Rufino, etc..) afirmaram que, após terem lutado, viam com freqüência que as balas usadas pelos cangaceiros “eram INFINITAMENTE MAIS NOVAS” que aquelas que a própria polícia usava. Diferença, por vezes, de até quinze anos entre elas. Como as balas seriam novas para os cangaceiros e velhas para o corpo militar?
A assim aceitar esta teoria, é referendar a seguinte premissa: “a polícia negociava as balas novas e ia para o campo brigar com as velhas”! Não há outra conclusão disponível. Ou, de outra forma: “os militares vendiam as balas novas e se lançavam em uma cruzada suicida, usando balas até QUINZE ANOS MAIS VELHAS que as que eram supostamente vendidas aos cangaceiros”. Seriam estúpidos assim? Estranho mesmo esse detalhe. Bizarro, diria. Aliás, alguém com um pouco de lucidez já percebe de cara esse descompasso. É patente e lógico demais.
E um outro aspecto: TODAS as balas recebidas por chefes de volantes tinham que ser, periodicamente, conferidas pelo comandado através de um relatório. O responsável teria que, obrigatória e periodicamente, apresentar uma relação (através destes relatórios) constando a munição recebida, a que foi gasta em combate e, ainda, informar o que tinha disponível para uso naquela data. Tudo era rigorosamente chegado, notadamente depois da Revolução de 1930. Controle absoluto das entradas e saídas de munição.
A coisa não parece tão simples como se conta.
O que quero dizer com isso tudo? - Simples: que já é mais que hora de deixar de lado essa tendência de atacar graciosamente - e sem provas - as instituições do país (às vezes somente à custa de uma interpretação ideológica já de muito ultrapassada) e CUIDAR DA HISTÓRIA REAL, desnuda de fantasias e baseada em rigoroso MÉTODO HISTÓRICO, para que os vindouros possam ter uma visão plena, imparcial e aceitável dos fatos, e não uma imagem distorcida propositalmente, nascida da simples vontade de denegrir!
Abraço a todos e votos de um Feliz 2010.
Sérgio Dantas .'.
NATAL/RN
------------------------------------------------------------------------------------------
NOTAS:
(*) Sérgio Augusto de Souza Dantas é bacharel em Direito, pesquisador independente e autor dos livros “Lampião e o Rio Grande do Norte” (2005), “Antônio Silvino: O Cangaceiro, O Homem, O Mito” (2006) e “Lampião: Entre a Espada e a Lei” (2008).
(1) A distância referida foi calculada com base em dados fornecidos por GPS. A medicação exata acusou 49,67 quilômetros em ‘linha reta’, de um ponto a outro.
(2) Em “Assim Morreu Lampião”, de Antônio Amaury Correa de Araújo, 1ª edição, 1982, pg. 101., Durval diz apenas que Bezerra ‘teria mandado as balas em dois sacos’. Não afirma que o viu no esconderijo. Com o correr dos anos, talvez pela confusão natural causada pela idade, a testemunha coloca o oficial em um animado carteado com Lampião e aumenta para três o número de sacos. É importante o estudioso estar atento a detalhes desse tomo.