segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Memórias de uma ex-cangaceira

A ÚLTIMA ENTREVISTA DE MARIA ADÍLIA

Por Gilvan de Melo Santos 1

 Maria Adília e autor deste artigo, em janeiro de 2002. 
Dia da entrevista e dois meses antes da sua morte.

Em janeiro de 2002, de posse de uma filmadora amadora SVHS, entrei na pobre casa de uma mulher que pertenceu ao bando de Lampião. Fascinado e curioso por me deparar com uma representação viva do tempo e espaço do cangaço, fenômeno por mim lido e visto até então apenas em livros, fotografias, filmes, jornais, peças de barro, pintura, e tantas outras manifestações artísticas, entrevistei a companheira do cangaceiro Canário, Maria Adília.

Este artigo apresenta trechos discursivos desta entrevista, a última de Maria Adília 2. Poderia chamar esta entrevista de conversa devido à liberdade concedida à entrevistada de expressar sua própria experiência, pois, como bem adverte Eduardo Coutinho, tentei esquecer que tinha uma câmera na mão, instrumento de poder que muitas vezes inibe interlocutores a se expressarem livremente 3.

Devido também à resistência de Adília em conversar “aquelas coisas” sobre cangaço 4, deixei o comando indireto da conversa para o guia turístico e artista Beto Patriota; o que justifica o entrecruzamento constante entre presente e passado na fala da ex-cangaceira, bem como das vozes de entrevistador, entrevistada e interlocutores durante o trabalho. A estratégia forçada tornou a sua fala menos presa às exigências da pesquisa, porém mais próxima ao método de associação livre proposto por Sigmund Freud no final do século XIX. Não querendo dizer que diante do silêncio expectante da entrevistada, não perguntei sobre a sua entrada no cangaço, Lampião, Maria Bonita ou outras questões de meu interesse.

O espaço para a interlocução foi a casa da ex-cangaceira, localizada na periferia da cidade de Poço Redondo, a cento e oitenta e quatro quilômetros de Aracaju,capital sergipana, às margens do Rio São Francisco, com população de aproximadamente vinte e seis mil habitantes e economia voltava para a agricultura e pecuária. Faz parte deste município a grota de angico, local privilegiado historicamente por ser palco de uma das maiores atrocidades realizadas pela polícia nordestina: morte e exposição das cabeças cortadas de Lampião, Maria Bonita e nove cangaceiros, na madrugada de 1938.

Foram percebidos na prefeitura e na praça principal do município signos referentes a um Lampião herói, através da construção de monumentos e placas em homenagem ao famoso cangaceiro, bem como de agenciamentos discursivos manifestados nas falas de seus artistas, o que traduz uma memória armazenada em suas instituições e seus símbolos, formas de impregnação do mito do herói e da consequente imagem midiática da cidade5. Entrevistando os artesãos Beto Patriota e Tonho, por exemplo, ambos afirmaram que as pessoas tinham mais medo da polícia do que dos cangaceiros, e que Lampião e Antônio Conselheiro estão vivos hoje naqueles que resistem às injustiças sociais6.

Segundo Costa 7, Poço Redondo é a cidade brasileira com o maior número de cangaceiros nascidos em seu chão. Conhecida como “a capital do cangaço”, teve mais de trinta, dentre homens e mulheres. Nela nasceram Sila (companheira de Zé Sereno), Diferente e Mergulhão (irmãos de Sila, sendo este último morto na chacina de Angico)8, Canário (companheiro de Maria Adília), Penedinho (cangaceiro que matou Canário e era primo-irmão de Adília)9 e Maria Adília. Acrescente a estes, coiteiros como Cumpade Bel, Durval (dono da antiga fazenda Angico), Mané Félix e o mais famoso, Pedro de Cândido, aquele que, torturado, revelou à polícia o esconderijo dos cangaceiros no dia anterior à chacina.

Panelas de alumínio na cozinha, retratos antigos, plantas e cadeira de balanço na sala, facilitavam o trânsito entre o momento da entrevista e o passado através do qual tinha interesse em mergulhar através das imagens produzidas pela memória daquela mulher. Memória que faz dobrar o tempo e traz saudades enraizadas da infância de quem experimentou os ares do sertão nordestino.

Como grande parte das mulheres que entraram no cangaço, Maria Adília, ainda adolescente, experimentou situações de perseguições e sofrimentos. Comparando o cangaço ao inferno, expõe na entrevista o amargor do preço de sua paixão. Ao ser questionada sobre o motivo que a levou a ingressar no cangaço, ela conta de
uma proposta do seu namorado, Bernardino, futuro cangaceiro Canário.

Segue o diálogo:

ADÍLIA:  
"Eu fui porque quis. O rapaz era daqui, de Poço Redondo. Ainda não tinha dezesseis ainda, ainda ia interar. Eu namorava com ele. Nós dois quase menino comecemo a namorar. Meus pais não queria e os pais dele não queria. Ele me falou que ia pro sul, aí ele perguntou se eu ia pro sul e com dois anos ele vinha me buscar. Aí eu disse: Se você for pro inferno e vier me buscar eu vou, quanto mais pro sul (...) pensando outra coisa".
ENTREVISTADOR: Aí não era pro Sul, era pro Cangaço?
ADÍLIA: Era pro inferno. 10
Ela não é a única ex-cangaceira a lembrar com dor os tempos do cangaço. Em entrevista ao jornal Diário de Pernambuco, o cangaceiro apelidado por “Vinte e Cinco” comentou: “Sou José Alves de Matos, natural de Paripiranga, no Estado da Bahia. Em Paripiranga começou a minha história triste que não quero recordar (...) foi lá que saí para entrar no bando do Capitão Virgolino”11. Também Benício Alves dos Santos, o cangaceiro Saracura, pertencente por cinco a seis anos ao bando de Lampião, questionado se sentia saudades do tempo do cangaço e se voltaria a fazer parte do bando, responde: “Não, não, nada... eu odeio quando falam daquele tempo” 12.

Entretanto, como a memória é feita de fios trançados por múltiplas experiências, quer sejam individuais ou coletivas, e dialoga com o contexto histórico, incluindo suas exigências e interesses próprios, Sila e Dadá enalteceram aspectos nobres da vida no cangaço. Ao falar sobre o cangaço, Dadá, companheira de Corisco, afirma que foi a maior união que ela já viu na vida; uma espécie de “família de gente grande” 13.

Para Sila, “mulher no cangaço era como flor: se encostar numa delas, machuca”. Ainda no mesmo depoimento, acrescenta que “todos os cangaceiros eram muito amorosos, tinham tanto carinho que eram capazes de esquecerem das armas” 14. O que justifica as divergências dos discursos das cangaceiras e dos cangaceiros acima mencionados, além de questões puramente subjetivas, subtende-se que seja a influência do contexto histórico no momento das enunciações. Construídos em lugares e tempos diferentes, os discursos ficam entrincheirados por uma “bacia semântica”15, dentro da qual imagens e lembranças, bastante sincronizadas, constituem o seu conteúdo.

Neste sentido, o cangaceiro Vinte e Cinco, na época da enunciação do seu discurso (1959), vivia o tempo do desenvolvimentismo nacionalista de Juscelino Kubitschek, período marcado, sobretudo, pela busca da modernidade em detrimento da tradição, industrialização efervescente, controle dos sindicatos e pelo medo dos comunistas e suas representações imaginárias, incluindo o cangaço 17. Basta lembrar que em 1935, posto no leque da tradição irrendentista do Brasil, e alimentado tanto pelo governo Vargas quanto pelo Partido Comunista do Brasil (PCB), Lampião foi vinculado à imagem de revolucionário, “defensor da liberdade
e da vida do camponês” 18.

Ainda mergulhado na “bacia semântica” do desenvolvimentismo nacionalista desde a era getulista e adentrando nos meandros da ditadura militar, marcados principalmente pela repressão radical a toda força política e todo discurso contrário ao governo dos generais, a fala do cangaceiro Saracura revela a tentativa de negar (“não, não, nada...”) um período de resistência à lei, não mais permitido no tempo de sua enunciação.

Ao contrário, Dadá e Sila, nas décadas de 80 e 90, experimentavam os primórdios da nova abertura política representada, sobretudo,pela anistia aos exilados políticos e pelo fim da ditadura, apesar da insistência do país em querer ascender à categoria de país de primeiro mundo, redundância mítica do nacionalismo e desenvolvimentismo outrora citados e ressignificados por governos civis. O que chama a atenção na fala da ex-cangaceira é que, paradoxalmente, imbuído de um realismo sensorial e, diria, na contramão de um discurso dominante na “capital do cangaço” através do qual Lampião é um herói contra as forças da injustiça social, Adília destaca: “a pessoa viver dois anos correndo pelo mato não é boa coisa não né ?” 19.

É certo que neste trecho nos é revelado o caráter nômade da vida dos cangaceiros de Lampião, porém, ao destacar uma vida de perseguição constante, em detrimento do romantismo expresso pelas suas companheiras Dadá e Sila, e por ainda lamentar a vida “infernal” das mulheres grávidas nas caatingas nordestinas, Maria amplifica mais dores que prazeres no cangaço, utilizando um discurso fora de lugar, ao menos do lugar físico, Poço Redondo.

Sendo o seu discurso imerso no regime noturno da imagem, caracterizado principalmente pela descida, pela inversão eufemizante, intimidade, religiosidade e por toda uma simbologia mística 20, Maria Adília utiliza figuras de linguagem que, por isomorfismo, garantem uma análise das imagens produzidas pela sua semântica.

Por exemplo, ao utilizar a metáfora “inferno”, referindo-se ao cangaço, a imagem que trazemos é de uma queda a uma região de sofrimento. “Inferno” que substituiu o caminho proposto por Canário, de ir ao sul do Brasil. “Cangaço” que, semelhante ao inferno, “quem entrava não podia mais sair” 21, local de morte, temática recorrente no discurso da ex-cangaceira, preso à estrutura mística do imaginário.

Posteriormente analisarei essa “queda” como “descida”, pois da experiência do cangaço Maria retirou lições necessárias para a sua vida.Maria Adília era espontânea, sorridente, vocalidade por onde fluíam “causos”,
histórias do passado misturadas a fatos presentes. Usando um vestido verde cheio de bolas brancas e se balançando numa cadeira, sua voz era uma expressão movida pela memória, gravitando entre imagens de seu tempo de cangaço e seus desejos de mulher e de mãe no tempo presente.

Num “discurso de autoridade” 22, em contraposição ao seu aspecto frágil e aparentemente inocente, enfatizava: “eu só digo o que eu sei” 23, revelando o aspecto empírico e subjetivo de sua fala, uma das características de uma história pautada na oralidade, onde, segundo Menezes, privilegia a “vivência subjetiva dos fatos sociais e históricos”, uma “história do local, do comunitário, de certos grupos e movimentos sociais”, além de uma percepção “vista de baixo” 24.

Reticente ao falar de Lampião e Maria Bonita, sua voz silenciava ante as expressões marcantes e enfáticas do sertanejo. No trecho abaixo vemos um exemplo:

ENTREVISTADOR: Como eram Lampião e Maria Bonita?
ADÍLIA: Lampião era boa pessoa. Ele não era brabo, só quem fizesse brabeza com ele, quem tivesse a língua grande, mas quem era bom com ele, que via ele e não conversava pra ninguém, aí era amigo dele. Agora conversou... não era amigo dele não. Maria Bonita era boa pessoa, boa, boa pessoa também. Eu não tenho queixa de Maria Bonita.
ENTREVISTADOR: E era bonita mesmo?
ADÍLIA: Era bonita, mas não era.... 25
Esta omissão no discurso manifesto (“agora conversou...”, “mas não era...”) garante à sua fala um subtexto de rara beleza lingüística, onde as reticências ficam à espera de imagens por onde ouvintes, agora leitores, podem completar o discurso que não se evocou. No subtexto de Maria pode está escrito que morria aquele que
conversava para a polícia onde Lampião estava. Sobre a beleza de Maria de Déia, Adília talvez quisesse expressar que era exagero o epíteto atribuído ao seu sobrenome: bonita. No entanto, essas imagens arquetípicas, ou seja, que cabem em vários discursos, permitem unir pontos reticentes da fala da entrevistada a
outros registros de memória, bem como a múltiplas vozes e textos, abertas ainda ao devaneio poético e a interesses acadêmicos, artísticos, políticos ou outros quaisquer.

Vemos também neste trecho uma eufemização (“Lampião era boa pessoa...”, “Maria Bonita era boa pessoa também...”, “era bonita, mas não era...”), uma das características do regime noturno, bem diferente da amplificação do heroísmo ou anti-heroísmo dos cangaceiros, destacados na maioria das falas de personagens25

Neste instante muda de assunto e começa a conversar com o poeta Beto Patriota, tentando, na
minha análise, esquivar-se das perguntas sobre Lampião e Maria Bonita. Entrevista com Maria Adília, históricos, de um e do outro lado da antinomia característica do regime diurno da imagem.

Voltando à temática da morte, Maria relata o assassinato de seu companheiro Canário, destacando o seu casamento “de verdade, na igreja”, uma espécie de “descida” - não de queda - ao “inferno” que ela designou “cangaço”. A experiência religiosa evidenciada em seu discurso a fez encontrar a realização do sacramento do matrimônio após a dor da perda do seu ente querido.

ENTREVISTADOR: Por onde a senhora andou no tempo do cangaço?
ADÍLIA: Isso aí tudo era mato, era caatinga, sempre eu andava pro todo canto, Raso da Catarina, pra Bahia, Santa Brígida. Eu saí ...eu tava pra ganhar neném, num lugar chamado Saco Grande, aí mataram ele. Um primo-irmão meu que matou ele. Aí eu fui e me entreguei. Passei três meses pro lado de Propriá e aí vim me embora pra aqui. Aí eu ganhei o menino e no dia que o menino inteirou um ano eu me casei. Aí eu me casei de verdades, fui casada mesmo, na igreja. Foi quando mataram Canário, e já tinham matado Lampião. Todo mundo foi se entregando, aí eu fui e me entreguei logo em Propriá. Não vou caminhar na frente de soldado, Deus me livre!! 26
Neste aspecto, distanciando dos episódios relacionados às façanhas heróicas, anti-heróicas e pícaras, principalmente de Lampião e Corisco, contadas pela maioria de seus companheiros e contemporâneos do cangaço, além de cordelistas, Maria Adília lembra também a sua condição de mãe e num processo de “inversão eufemizante”, busca na queda do “inferno”, a “descida” em seu próprio ventre, “símbolo hedônico da descida feliz”27, representadas nas lembranças de seu filho tido no cangaço, como se evidencia neste diálogo:

ENTREVISTADOR: Quantos filhos você teve no cangaço?
ADÍLIA: Eu só tive um. Eu não sei onde é que ele mora. Mora em São Paulo, mas não sei o endereço dele. Agora eu tô com vontade de ir acolá para vê se ele me dá notícia. Ele mora em São Paulo, mas eu não conheço. 28
O registro de sua memória apresenta a trajetória pessoal de uma mulher que entrega o seu filho a algum coiteiro - ação comum das mulheres cangaceiras -, o que não exime a sua fala da influência da memória coletiva e da recepção ali por nós representada, costurando e movendo também as suas lembranças.

A vocalidade da entrevistada, de forma mais perceptível que o texto escrito, caracteriza-se por uma série de reticências, silêncios, redundâncias, omissões, falas movidas por interesses e desejos pessoais em harmonia ou conflito com interesses e desejos da recepção e que, não fossem amarradas por um fio narrativo, daria à evocação final uma aparente descontinuidade.

Transformado em texto, a voz de Adília é, em termos linguísticos, característica de uma “oralidade mista”29, onde voz e letra se misturam e marcam o tempo todo uma rítmica e repetições (“ele mora em São Paulo”), o que facilita a leitura dos significados linguísticos e o esclarecimento das imagens inconscientes produzidas pela enunciadora, “indicadores fabulosos do trabalho gestado pela memória e pelos desejos” 30 da entrevistada.

Neste aspecto, um texto oral possivelmente fará o leitor acompanhar o corpo e a tonalidade da voz do enunciador, absorver a sua cultura, representada principalmente pela sua linguagem. Em medida semelhante ao texto poético, essa voz faz sentir o “peso das palavras, sua estrutura acústica, a materialidade textual”31. Um texto não apenas lido, mas também imaginado pelo leitor e presentificado por uma voz inseparável da performance de quem o enuncia. A voz de Adília é a própria “emanação do seu corpo” 32, corpo desejante de mãe, antes de ser cangaceira.

Além disto, o conteúdo latente da voz de Maria Adília - “eu não sei onde é que ele mora” ou “agora eu tô com vontade de ir acolá” - expressa a oscilação entre a movência da memória individual e as exigências da recepção, onde, em diálogo, dão verossimilhança à narrativa. A vontade de Maria Adília é ir até onde está o seu filho, no “São Paulo” da sua memória, aquele “São Paulo” primordial que a fez fugir do seio da família para viver um grande amor. Não podendo sair do “inferno” - “cangaço”, ao menos ela poderá, quiçá, ir ao sul encontrar o seu filho, ainda vivo em seu ventre.Não sabendo onde ele mora (e sabendo!), ela preenche o espaço do seu desejo (“agora eu tô com vontade de ir acolá...”) com o desejo do entrevistador (“por onde a senhora andou no tempo do cangaço?”).

O subtexto dá lugar a toda uma “rede de tensões e representações da realidade presente e atuante na dinâmica da entrevista”33, produzindo assim um texto que ora se aproxima e ora se distancia dos desejos da entrevistada. Na assertiva de Hallbwachs, ela cobre a lacuna de sua memória individual com o discurso mais estável da memória coletiva e recepção, por sua vez apoiada em “leis e pontos de referên ia” aceitos socialmente 34.

A voz de Adília, hoje transformada em texto, apresenta-se como imagem de uma memória. Um “testis” mais que um “textum”, um documento de uma verdade, uma narrativa enriquecida pela voz de quem viveu um tempo histórico construído por discursos obtusos, românticos, fantasiosos, ideológicos ou ditos “verdadeiros”.

Sua memória é um “arquivo imperfeito”, pois não epifaniza a verdade, nem sequer a sua verdade, mas a verossimilhança, agenciada pela narrativa do desejo e das amarras sociais, apesar da autoridade de seu discurso 35.

Adília entendia bem o que era uma mulher cangaceira aguentar as perseguições da polícia trazendo no ventre um filho, pois conduziu, juntamente com Maria Bonita, a companheira Sila para um lugar distante da volante do tenente José Rufino. Sua ajuda fez nascer, com “saudações de tiros”, “João do Mato”, o primeiro filho de Sila 36.

Durante a conversa tive também o objetivo de saber como os cangaceiros absorviam e vivenciavam manifestações da cultura popular. Vejamos:

ENTREVISTADOR: Quais são as boas recordações do cangaço, alguma festa ou outra coisa?
ADÍLIA: tinha as festas de nós mesmos, o xaxado. Festa dos paisanos na rua não tinha não. Tinha nas cidades: Prestes Domingos, Pedra D’água, Cururipe 37
(Ao citar a cidade de Cururipe como um dos locais de festa, ela lembra que foi lá onde mataram o seu companheiro Canário, retomando mais uma vez a temática da morte) Importante acrescentar que Sila, pertencente ao mesmo sub-grupo de Adília, relata que em um dos coitos eles dançaram ao som da “sanfona de Pé quebrado, sanfoneiro dos bons.” Também comenta que o cangaceiro Pitombeira contava as façanhas do Capitão Lampião em tom de narrativa, sorrindo e teatralizando cada passagem 38, numa prova de que o cangaço escrevia o seu próprio texto maravilhoso e fantástico, possivelmente em diálogo constante com a literatura de cordel. Maria interrompe a sua própria fala comentando a presença de estudantes em sua casa, trazendo o presente num passado imbricado com silêncios.

Diz: ADÍLIA:  
Chegou um bando de menina. - É a senhora que é Dona Adília?. Não sou Adília não. Pula, pula. - A senhora é aquela mulher que conversa as coisas? Eu converso porque tenho boca pra conversar, ninguém me empata conversar... pula... as meninas saíram aqui, viraram acolá...mas menino, eu vou dar crença a menino. É certo que eu já fui menina e ninguém me dava crença. Sai pra lá, Sai pra lá (todos sorrimos)...39
Adília não ficou tão famosa quanto Sila, Maria Bonita e Dadá. No entanto, a sua aparente imparcialidade discursiva - característica também destacada pelo pesquisador Frederico Pernambucano de Mello 40 contribuiu na construção de um imaginário do cangaço menos baseado nas estruturas heróicas. Sila e Adília ficaram aproximadamente dois anos no cangaço; Maria Bonita oito, e Dadá doze anos. Maria Bonita morreu em 1938 aos 27 anos, Dadá em 1994 aos 79 anos e Sila em 2005 aos 86 anos.

Em 1937, o Diário de Pernambuco destacou a presença das mulheres no cangaço, dentre elas, a entrevistada Maria Adília: Pela ordem, foram mulheres de destaque no cangaço: Dadá, Maria Bonita, Sila, Durvinha, Neném, Mariquinha e Maria Juvina, seguidas, sem ordem, de Enedina, Rosinha, Dulce, Otília, Lili, Lídia, Adília, Sebastiana, Maria de Azulão, Veronquinha, Inacinha, Eleonora, Cristina, Moça (Joana Gomes), Quitéria e outras mais. Por suposição de adultério, Lídia e Lili foram mortas por seus amantes, José Baiano e Moita Braba (...) Maria Bonita, Nenem, Mariquinha, Eleonora, Maria de Azulão e Enedina são mortas pela volante, com seus corpos vilipendiados de mil maneiras. Dadá, Sila, Maria Juvina, Dulce, Otília, Inacinha, Adília, Quitéria, Sebastiana e Moça, presas pela volante, vêm a ser poupadas e se reincorporam à sociedade...41

Ao final de março do mesmo ano (em 2002), Beto Patriota me telefonou comunicando a morte de Adília, aos 82 anos, dois meses após conceder esta entrevista, pedindo-me aquelas que seriam as últimas imagens de um pedaço da memória do cangaço. Lembro que ao ir embora no dia da entrevista, levava comigo uma sensação de despedida, além do registro fílmico, e fiquei a observar atentamente aquela senhora magra acenando para nós da porta de sua humilde casa. “Cangaceira sim, e valente; mas mulher, sempre e antes de tudo”42.

Este artigo não deixa de ser uma homenagem a todas as mulheres que desafiaram o seu tempo e escreveram páginas de sofrimento, sangue, tiros, dores, crimes. Mas também, sonhos, fantasias, filhos ausentes, choros e silêncios. Como Maria Adília, tantas mulheres tiveram a coragem de dizer o não-dito no lugar do já dito pela história oficial.

Notas e referencias:

1 Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual da Paraíba. Doutorando em Lingüística pela Universidade Federal da Paraíba.
2 Parte desta entrevista foi publicada no filme documentário, intitulado Sonhos de Maria: a ex-cangaceira do bando de Lampião, em 2005, como pré-requisito para a minha conclusão junto ao Curso de Bacharelado em Arte e Mídia da Universidade Federal de Campina Grande. Segundo informações do poeta e facilitador da entrevista, Beto Patriota, esta foi a última que Maria Adília concedeu.
3 COUTINHO, Eduardo. “O cinema documentário e a escuta sensível da alteridade”. Projeto História, São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1981.
4 Entrevista com Maria Adília. Poço Redondo-SE, jan. 2002. 2 fitas SVHS (20 min). Concedida a Gilvan de Melo Santos.
5 DURAND, Gilbert. “Método arquetipológico: da mitocrítica à mitoanálise”. In:. Campos do imaginário. Tradução de Maria João Batalha Reis. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
6 Entrevista com Beto Patriota e Tonho Artesão. Poço Redondo-SE, jan. 2002. 1 fita SVHS (15 min).
Concedida a Gilvan de Melo Santos.
7 COSTA, Alcino Alves. O sertão de Lampião. Aracaju: s.r., 2004, p. 203.
8 SILA, Ilda Ribeiro de Souza. Angicos, eu sobrevivi: confissões de uma guerreira do cangaço. São Paulo: Oficina Cultural Mônica Buonfiglio, 1997, p. 30 e p. 70.
9 Sobre a morte de Canário, leia-se: COSTA, O sertão..., p. 275-283.
10 Entrevista com Maria Adília, Concedida a Gilvan...
11 Diário de Pernambuco, Recife, 10 mai. 1959, p. 6. 144 [17]; João Pessoa, jul./ dez. 2007.
12 SOARES, Paulo Gil (dir.). Memória do cangaço: entrevista com Saracura. Pernambuco: s.r., 1965, 1 DVD.
13 HUMBERTO, José (dir). A musa do cangaço. Entrevista com Dadá. Salvador: s.r., 1983, 1 DVD.
14 SILA, Angicos: eu sobrevivi..., p. 49.
15 Segundo Durand, bacia semântica equivale ao “conjunto sociocultural identificado por regimes imaginários específicos e mitos privilegiados”. DURAND, Gilbert. Campos do imaginário. Tradução de Maria João Batalha Reis. Lisboa: Piaget, 1989, p. 165.
16 Foto da Coleção Antônio Amaury Corrêa de Araújo. Publicada em Superinteressante, ano 11, n. 6,
jul. 1997.
17 SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a castelo (1930-1964). 13 ed. Apresentação de Francisco de Assis Barbosa. Tradução de Ismênia Tunes Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003, p. 203-231.
18 Leia-se: Discurso de “Miranda” apud VIANNA, Marly de Almeida G. In: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucila de Almeida Neves (orgs.). O tempo do nacional-estatismo: do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 76-79.
19 Entrevista com Maria Adília, Concedida a Gilvan...
20 Destas categorias apresentadas me remeterei a algumas delas, pontuando o que for necessário. No entanto, para aprofundá-las, leia-se: DURAND, Gilbert. “O regime noturno da imagem”. In: As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. 3. ed. Tradução de Hélder Coutinho. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 191-281.
21 Entrevista com Maria Adília, Concedida a Gilvan...
22 Segundo Bourdieu, o reconhecimento do “discurso de autoridade” é o suficiente para provocar o efeito persuasivo necessário. A autoridade do discurso de Maria Adília provém da sua condição de ex-cangaceira. Para aprofundar tal questão, leia-se: BOURDIEU, Pierre. “Linguagem e poder simbólico”. In: A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: Edusp, 1998, p. 91.
23 Entrevista com Maria Adília, Concedida a Gilvan...
24 Numa mesa redonda pude dialogar com a professora aspectos de meu primeiro vídeo-documentário,
intitulado “Lampião: uma história contada pela arte”. Para maiores detalhes, ver: MENEZES, Marilda.
Conferência: Lampião vive: memória e linguagens (comentário do vídeo: Lampião: uma história contada pela arte). Campina Grande: Departamento de Psicologia, projeto aula-extra, em 8 ago. 2002. Sobre os pressupostos da História Oral, recomendo o recente artigo: VELOSO, Thelma Maria Grisi. “Pesquisando fontes orais em busca da subjetividade. In: WHITAKWE, Dulce Consuelo Andreatta & VELOSO, Thelma Maria Grisi (orgs.). Oralidade e subjetividade: os meandros infinitos da memória. Campina Grande: EDUEPB, 2005, p. 17-42.
25 Neste instante muda de assunto e começa a conversar com o poeta Beto Patriota, tentando, na
minha análise, esquivar-se das perguntas sobre Lampião e Maria Bonita. Entrevista com Maria
Adília,
Concedida a Gilvan..., grifos nossos.

26 Entrevista com Maria Adília, Concedida a Gilvan..., grifos nossos.
27 DURAND, As estruturas..., p. 203.
28 Entrevista com Maria Adília, Concedida a Gilvan..., grifos nossos.
29 ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a literatura medieval. Tradução de Amalio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 18.30 VELOSO, “Pesquisando fontes...”, p. 29.
31 ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: EDUC, 2000, p. 64.
32 O conceito de performance aqui desenvolvido advém da teoria de Paul Zumthor. Segundo ele, “é o ato pelo qual um discurso poético é comunicado por meio da voz e, portanto, percebido pelo ouvido”. Ver: ZUMTHOR, Paul. Escritura e nomadismo. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Sônia Queiroz. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005, p. 87. Sobre relação da voz com o corpo, ver: ZUMTHOR, Performance..., p. 71-86 e p. 99.
33 AUGRAS, Monique. “História oral e subjetividade”. In: SINSOM, O.R.M.V. (org.). Os desafios contemporâneos da história oral. Campinas: CMU/ UNICAMP, 1997, p. 30.
34 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice Editora; Revista dos Tribunais, 1990, p. 57-58.
35 Sobre a idéia de arquivos imperfeitos, leia-se: COLOMBO, Fausto. Os arquivos imperfeitos: memória social e cultura eletrônica. São Paulo: Perspectiva, 1991.
36 SILA, Angicos, eu sobrevivi..., p. 77-80.
37 Entrevista com Maria Adília, Concedida a Gilvan...
38 SILA, Angicos, eu sobrevivi..., p. 42 e p. 54.
39 Entrevista com Maria Adília, Concedida a Gilvan...
40 Numa conversa pessoal comigo, em abril de 2007, Frederico Pernambucano de Mello acrescentou que Maria Adília, ao contrário de Dadá e Sila, não foi influenciada por teorias marxistas, através das quais afirmava que Lampião era um herói injustiçado pela classe dominante.
41 Diário de Pernambuco, Recife, 18 abr. 1937, apud MELLO, Frederico Pernambucano de. Quem foi Lampião. Recife: Stahli, 1993, p. 113, grifos nossos.
42 SILA, Angicos, eu sobrevivi...,p. 75.


RESUMO
Este artigo apresenta trechos discursivos da última entrevista da ex-cangaceira do bando de Lampião, Maria Adília. A voz de Adília, hoje transformada em texto, apresenta-se como imagem de uma memória. Um “testis”
mais que um “textum”, um documento de amplo valor histórico, que faz mover o imaginário do cangaço.

Fonte: http://www.cchla.ufpb.br/saeculum/saeculum17_art03_santos.pdf

HQ cangaceira

História de Lucas da Feira em quadrinhos aprovada no Edital de Apoio a Microprojetos Culturais

Informa Marcelo Lima

O projeto Lucas da Feira em Quadrinhos, meu e de Marcos Franco, foi aprovado no Edital de Apoio a Microprojetos Culturais. O projeto tem como objetivo a publicação de um álbum em quadrinhos sobre Lucas da Feira, personagem histórico emblemático e polêmico da cidade de Feira de Santana, além de ações educativas em escolas da cidade.

Fruto de mais de dez anos pesquisa do roteirista Marcos Franco e de entrevistas, realizadas em conjunto comigo, com pesquisadores e líderes de associações de bairro feirenses, o álbum em quadrinhos resgatará a história do escravo rebelde Lucas da Feira. Lucas da feira é uma incógnita na história feirense. Sabemos por algumas pessoas que ele foi ladrão, outras dizem que não era um verdadeiro criminoso, pois roubava dos ricos para dar aos pobres. Outros só conhecem o seu nome. Outros, nem mesmo possuem informação alguma sobre sua existência.

Os feirenses evocam o nome de Lucas de quando em quando, mesmo que conheçam tão pouco sobre quem estão falando. Isso decorre do fato de Lucas ter se formado mito mais do que personagem histórico. Há inúmeras versões orais sobre a trajetória de vida de Lucas, cada uma com suas próprias datas e personagens, além de uma gama de cordéis, da qual podemos destacar o ABC de Lucas. Dos documentos oficiais, se destaca a transcrição do interrogatório de Lucas, quando este foi preso.

Baseado em fontes oficiais, literatura de cordel e registros orais, a HQ se situará no meio-termo que tem alimentado as discussões sobre Lucas da Feira, que podem ser resumidas à pergunta: era Lucas da Feira herói ou bandido? Longe de dar uma resposta clara, eu e Marcos dissecamos as duas alternativas de resposta e construímos uma história sobre as relações sociais e políticas da época do Brasil Império, sem esquecer toda mitificação sobre a personagem. Desenhada por Hélcio Rogério, a HQ está em produção e deverá ser lançada em junho de 2010.

O edital para APOIO A MICROPROJETOS CULTURAIS é uma ação inédita do Ministério da Cultura (MinC) e que beneficia o Semiárido de onze estados brasileiros. O edital destinará recurso na ordem de R$ 3.061.742,28 (três milhões, sessenta e um mil, setecentos e quarenta e dois reais e vinte e oito centavos) a 281 projetos de municípios baianos, com o valor mínimo de R$ 465,00 (quatrocentos e sessenta e cinco reais) e máximo de R$ 13.950,00 (treze mil, novecentos e cinqüenta reais). Trata-se de uma iniciativa voltada exclusivamente para o interior do Estado e que vai contar com a participação de órgãos de cultura municipais.

Açude:  Roteirizando HQ

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Serra Talhada

CULTURA VIVA NA FEIRA

O ponto de Cultura Artes do Cangaço convida quem tem fome de cultura para dar uma paradinha na área de alimentação da FEIRA LIVRE de Serra Talhada para comer um saboroso arroz vermelho com carne de bode, buchada, rubacão, caldo de mocotó, tomando uma lapadas de raizada, caldinho, tripa assada, munguzá salgado e muita conversa de matuto...

... Enquanto comemos e bebemos, vamos saciando a fome assistindo o CULTURA VIVA NA FEIRA, com atrações:

o GRUPO DE XAXADO ALPERCATA DE RABICHO
o GRUPO DE DANÇAS GILVAN SANTOS
o CONEXÃO HIP HOP
o GRUPO DE DANÇAS POPULARES BOM JESUS
o GRUPO DE DANÇAS MULHER RENDEIRA
o QUINTETO CABRAS DE LAMPIÃO

Quem quiser mais coisa, inda tem: Exposição de fotografias do cangaço, estande com cordéis e artesanatos produzido pelo Ponto.

CULTURA VIVA NA FEIRA
Dia 30 de novembro/09 (segunda feira), a partir da 09 hs, na ÁREA DE ALIMENTAÇÃO da FEIRA LIVRE.

INCENTIVO:

SEBRAE/PE.
ARTEPE/Associação dos realizadores de Teatro de Pernambuco
Prefeitura Municipal de Serra Talhada

APOIO:
Cultura Viva
Ministério da Cultura
Governo Federal


Vejam nosso novo sáite: www.cabrasdelampiao.com.br
Att. Anildomá Willans de Souza

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Devaneios que inspiraram lixos literários

Seu dotô, pode botar aí, que foi verdade! 

Por: Ivanildo Silveira

O jornalista baiano, Juarez Conrado (vide foto), na década de 80, escreveu para o Jornal "A Tarde", uma série de 03 reportagens, depois transformada em livro, sobre os últimos dias de Lampião, antes da chacina, que o vitimou, na Grota do Angicos/SE, em 28/julho/1938.

Com base em depoimentos de coiteiros e ex-cangaceiros, em entrevistas com testemunhas oculares, e apoiado em cuidadosa pesquisa, que incluiu visitas ao cenário dos acontecimentos, o jornalista refez os sete dias, os últimos da vida do Rei dos cangaceiros.

Uma das reportagens feitas pelo citado jornalista, foi com o grande coiteiro " Manoel Félix" (vide foto, logo abaixo). Esse coiteiro esteve com Lampião, na Grota do Angico, em vários dias, seguidos, inclusive, no penúltimo dia que antecedeu a morte do Rei do Cangaço.

O grande coiteiro "Manoel Félix"

Nascido e criado em Poço Redondo, de onde jamais se afastou, trabalhando sempre no campo, Manoel Félix um sertanejo calmo e tranquilo, e, certamente, a principal testemunha de tudo o que ocorreu com "Lampião" e seu bando durante os sete dias de permanência na Grota do Angico, onde, surpreendido pela tropa do tenente Bezerra, encerrou, tragicamente, os 22 anos de aventuras pelos sertões de sete estados nordestinos.

Cortesia do pesquisador/escritor- Dr. Sérgio Augusto de Souza Dantas

Durante muito tempo conviveu com "Lampião", sendo por ele encarregado da aquisição de mantimentos na feira de Piranhas, no Estado de Alagoas, do outro lado do Rio São Francisco, bem à frente de Canindé.

Manoel Félix como a grande maioria dos moradores de Poço Redondo/SE de uma certa idade, viu de perto "Lampião", a quem jamais traiu ou temeu, porque dele ignora qualquer crueldade praticada na região contra os que ali viviam, o que não acontecia, porém, com as "volantes", temidas e odiadas pela barbaridade de seus integrantes que, no afã de compensarem sua incapacidade em descobrirem o bandoleiro, martirizavam com seus impiedosos tratamentos a quantos julgavam "coiteiros".

Manoel Félix , amigo particular de Virgulino Ferreira da Silva, a quem reconhece "um homem fino e educado", embora lamentando o seu trágico fim, "porque um homem como Lampião não devia morrer assim", confessa ter sentido "uma frescura de alivio no espinhaço" ao certificar-se de sua morte, pois, mais dia, menos dia, sabia que também ele acabaria torturado pelas desumanas "volantes".

Seu depoimento gravado, que nos prestou em Poço Redondo/SE, percorrendo em nossa companhia os principais pontos por onde "Lampião" passou, é o maior documento que pode existir sobre os últimos dias do "Governador do Sertão".

Viajou com Lampião

Manoel Félix que já conquistara a confiança de Lampião, teve oportunidade de fazer algumas viagens em companhia do famoso bandoleiro, a última das quais à localidade conhecida como Capoeira, às margens do Rio São Francisco, fato ocorrido após sua chegada à Gruta do Angico.

Em meio à viagem, pegaram uma cabra, do que se encarregou o próprio Manoel Félix, com ela preparando o almoço, já por volta das quatro horas da tarde. Propositadamente, tendo em vista que o encontro se daria à beira do rio, por onde navegavam muitas canoas, "Lampião" permaneceu escondido no mato até o cair da noite, quando foi se avistar com o fazendeiro Joaquim Rizério, com quem fizera as pazes após longos anos de feroz inimizade. O que conversaram ninguém veio a saber, pois a reunião entre ambos foi sigilosa, em local reservado.

Poupava as cobras

Já de retorno à gruta, um fato chamou a atenção de Manoel Félix: a preocupação de Lampião e seu bando em não matarem cobras por mais venenosas que fossem. Disso, aliás, o próprio coiteiro teve provas quando, distraidamente, ia pisando uma cascavel que surgira em meio ao caminho. Pegando de um pau para matá-la, foi impedido por Zé Sereno, que não permitiu, procurando, com muito jeito, fazer com que a cobra retornasse aos matos de onde havia saído.

Em outra,oportunidade, quatro ou cinco dias antes da chacina, Manoel Félix, em companhia do seu irmão Adauto, foi até a gruta levar para Lampião certa quantidade de doce de côco, por ele muito apreciado, tendo o cangaceiro, bastante satisfeito, agradecido o presente, logo distribuído em pequenas quantidades com algumas mulheres do grupo, como Maria Bonita, Enedina, Cila, Maria, Dulce e Maria, mulher de Juriti.

Nesse dia, havia chegado um sobrinho de Lampião, chamado de “José” – de 18 anos, a fim de integrar-se ao bando, tendo "Lampião" encarregado o coiteiro de comprar na feira de Piranhas/AL, do outro lado do rio, a mescla para preparar o bornal do jovem, o que, entretanto, não chegou a acontecer, como veremos mais adiante.

Lampião esperava “Corisco e Labarêda”


Conquanto nada lhe dissesse diretamente, porque com ele não conversava sobre assuntos internos do grupo, Manoel Félix ouviu de Lampião, na véspera de sua morte, estar na expectativa da chegada de Ângelo Roque, o "Labarêda", que fora a Jeremoabo, e de Corisco, que se encontrava do outro lado, em Alagoas.

Embora a conversa sobre esses dois bandoleiros fosse com Zé Sereno, Manoel Félix sentiu por parte de Lampião certa preocupação ante a demora dos mesmos, preocupação que o levou a conjecturar sobre um possível encontro com as volantes, hipótese logo descartada porque, segundo disse, "se fosse macaco a gente já tinha sabido".

Até às 18 horas do dia 27/julho/1938, véspera da morte de Lampião, quando deixou a Grota, Manoel Félix não registrou a chegada de nenhum dos dois celerados, confirmando-se depois que se encontravam ausentes no momento do cerco pela tropa do Tenente João Bezerra.

Contatos

Outro detalhe muito importante relatado por Manoel Félix é o que se relaciona às ligações de Lampião com influentes fazendeiros, principalmente nos estados de Bahia, Alagoas e Sergipe, embora sempre com o cuidado de não revelar, nem mesmo aos seus mais chegados seguidores, a identidade desses indivíduos.

Na última semana de vida, Lampião  manteve, lá do Angico, contatos com vários desses fazendeiros através de emissários que despachava secretamente, e dos quais, por motivos óbvios, exigia absoluto segredo de suas missões, geralmente com o objetivo de apanharem dinheiro, mantimentos, armas e munições.

De quem chegava, ou de onde chegava o que ele precisava, Lampião fazia questão de não relatar, mantendo tudo sob o mais completo sigilo.

A confiança de Luiz Pedro

Por volta das 15 horas do dia 27/Julho/1938, treze horas portanto, antes do cerco que lhe causou a morte, Maria Bonita, que na opinião de Manoel Félix, não competia em beleza com Cila, deixou a gruta, onde se encontrava com os companheiros, e foi banhar-se no riacho que passa próximo a entrada da mesma.

O coiteiro descreveu-nos a fiel e corajosa companheira de Virgulino Ferreira a Silva, assim à vontade, como uma: "mulher baixinha, toda redondinha, uma carinha bonita e com dois olhos pretos e grandes, morena clara, cabelos negros e lisos, quadris relativamente largos, cintura fina, tendo os braços e pernas roliços e muito bem feitos".

Muito "prosista e conversadeira", brincava bastante com alguns dos bandoleiros, pelos quais era respeitada, apesar de muitos deles levarem essa brincadeira mais além, como Luiz Pedro, por ela chamado de “Caititu”, e que gozava da maior confiança e intimidade da mesma e do próprio Lampião, seu compadre.

Nada de anormal até o momento? Realmente o Juarez tava indo até "marro meno"... vejam como a "invenção" de um gesto poe em cheque a autoridade do Rei do cangaço perante seu comandados. (Kiko Monteiro) 

Nessa tarde, por sinal, depois de "caçoar" com Luiz Pedro, deixando de fazê-lo somente no momento em que se dirigia para o riacho, o bandoleiro, que estava sentado sobre uma pedra, deu-lhe uma palmada mais ou menos forte nas nádegas, fazendo-a correr na direção do pequeno córrego, enquanto Lampião, que a tudo assistia, sorriu como se nada tivesse acontecido.

Na véspera da morte

Manoel Félix recorda-se que, na véspera da chacina, quando esteve com Lampião, informou não lhe ter sido possível comprar na feira de Piranhas, em Alagoas, tudo o que ele mandara (carne, peixe, queijo, agulhas, chapéu de couro, uma máquina de costura e brim mescla), porque, como já dissemos na reportagem anterior, a Polícia passou a vigiá-lo.

Ainda assim, entregou as agulhas de Maria Bonita, devolvendo a Lampião os 200.000 réis que dele recebera para adquirir mantimentos. Conversaram durante longo tempo, comendo queijo, que chegara da Fazenda Mulungu, de onde o bando havia recebido certa quantidade de farinha e açúcar.

Lampião mostrava-se bem disposto, pedindo-lhe, inclusive, que lhe cedesse o cinturão em virtude do seu já se encontrar bastante estragado.

Também Maria Bonita, muito "prosista e conversadeira", conversou com Manoel Félix, procurando informar-se da situação financeira do mesmo e dos seus familiares.

Aliás, desde o primeiro encontro que teve com o grupo, na Fazenda Bom Jardim, em Sobradinho, no local conhecido como “ Olho D'Água de Antônio Jorge", quando foi levar banha de peixe que o seu tio Lisboa Félix, também amigo e coiteiro de Lampião, mandara para o cangaceiro "Boa-Noite" passar no joelho doente, que "Maria Bonita" demonstrou haver gostado dele.

Nessa tarde, dia 27 de julho, Manoel Félix recorda-se de que vários cangaceiros jogavam cartas, entre eles Juriti, Passarinho, e Sereno, Luiz Pedro, José de Julião, Moeda, Mergulhão, Colchete, Alecrim, Fortaleza, Cajazeira, Criança, Quinta-Feira, Elétrico, Macela, Canário e Caixa de Fósforo, enquanto outros passeavam nas proximidades.

Luis Pedro, teve oportunidade de mostrar-lhe, e ao seu tio Caduda, que estava em sua companhia, grande quantidade de ouro guardada numa pequena caixa, como anéis, correntões e argolas.

Este bandido, de estatura mediana, claro, cabelo miúdo, e muito alegre, juntamente com Manoel Moreno e Zé Sereno, preparou a comida para o grupo na véspera da morte.

Embora não lhe revelassem plano de ataques a qualquer cidade, Manoel Félix pôde ver que o grupo contava com grande quantidade de armas e munições, como fuzis e revólveres, além de punhais.

Na última tarde que teve de vida, Lampião, segundo  Manoel Félix estava absolutamente tranqüilo, chegando mesmo a fazer pilhérias quando soube do medo que causava ao coiteiro a possibilidade de ser descoberto pelas volantes. Aliás, nos últimos meses, Lampião parecia mais acomodado, um tanto diferente porque sempre pensativo, o que não impedia, porém, de manter a autoridade sobre o grupo, inclusive com os mais temíveis dos seus integrantes, como aconteceu com Luiz Pedro quando este, querendo botar o seu cachorro para brigar com "Guarany” o de "Lampião", acabou se desentendendo com o chefe, de quem levou, sem responder uma única palavra, séria repreensão.

Com relação ao cachorro “Guarany” ocorreu um fato interessante na segunda-feira que precedeu à chacina do Angico: descansando, com a cabeça recostada a uma pedra, Lampião cochilava, tendo ao lado seu fiel cão de guarda, quando dele se aproximou Zé Sereno, trazendo um bode que capturara pouco antes.

Vendo o animal, “Guarany”, latindo muito, avançou sobre ele, assustando-o, fazendo com que bode, espantado, pulasse sobre Lampião, que, extremamente supersticioso, vendo na reação do bicho um possível mau sinal, ordenou, aos gritos, que Zé Sereno soltasse imediatamente "esta peste", no que foi prontamente atendido.

Até às 18 horas do dia 27/julho/1938, aproximadamente, Manoel Félix permaneceu no Angico, de onde saiu com a recomendação feita por Lampião para retornar no dia imediato, madrugada ainda, pois eles teriam que viajar, tudo indicando que, como das vezes anteriores, a última das quais na Fazenda Santa Filomena, distante duas léguas da sede de Poço Redondo/SE, iria receber 50 ou 100 mil reis de gratificação, pelos serviços que prestou.

Este, o encontro que jamais iria se realizar, pois, de acordo com as instruções recebidas, ao se dirigir, na madrugada do dia imediato (28/julho/1938), para a Grota do Angico , à certa distância ouviu o tiroteio terrível, o que lhe deu a convicção de que, afinal, a volante houvera descoberto o esconderijo de Virgulino Ferreira da Silva, cercara-o e se encontrava dando-lhe combate, sobrevindo, a morte do Rei do Cangaço, naquele fatídico dia.

Fonte: Segunda reportagem publicada em 28/05/1980) no Jornal "A TARDE" / Salvador
Autor: Jornalista Juarez Conrado


Considerações

Realmente, eu achei, também, muito estranho, a narrativa do autor da matéria, ao tecer comentários na reportagem sobre "Maria Bonita", tendo informado: É a narrativa de um fato inusitado, envolvendo "Luiz Pedro  e Maria Bonita", e que deixa os estudiosos/pesquisadores do cangaço de "orelha em pé ". Como se vê, ou o jornalista exagerou na sua narrativa, ou o coiteiro Manoel Félix, lhe narrou o fato, de maneira diversa do ocorrido, na realidade. 

Na minha opinião, acho difícil e improvável, que tal fato, tenha ocorrido.

Convém, também salientar, que na literatura cangaceira, pelo menos nos livros que li até hoje, não constatei, nenhuma linha, em relação ao comportamento de Maria Bonita, em que o rei do cangaço tenha externado "cenas de ciúmes", da parte dele, em desfavor de algum cangaceiro " . 
 
Como se constata, há muitas informações relativas ao "casal Rei do Cangaço", que precisam de uma melhor análise, separando-se o fato real, da lenda, bem como as insinuações de alguns escritores .

Um abraço a todos, 
Ivanildo Silveira
Natal/RN

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Atenção colecionadores

Livros a venda


Antes de divulgar nossa realção vamos apresentar mais um livro abordando o cangaço é lançado em Serra Talhada. Entre a cruz e o punhal: a dialética histórica do rei do cangaço, é o título da obra, do Prof. Cícero Lopes da Silva.

O presente trabalho constitui um breve resgate histórico transpassado por uma abordagem dialética e religiosa do fenômeno social do Cangaço e de seu principal expoente, tendo como objetivo contribuir para que a história do Cangaço e, sobretudo, de Lampião, não seja ofuscada nem pela estreiteza de espírito nem pelo simplismo moral.

O livro custa R$ 30.00 (Trinta reais). Incluso serviço de postagem.

Como adquirir:

Através dos telefones : (87) 3831 2041 / 3831 3860
E-mail : cabrasdelampiao@bol.com.br
• Pagtº - Através de depósito, em nome de:
Cleonice Maria Dos Santos
Banco Real : Ag. nº 1124
C/C nº 5109058

A lojinha do Museu do Cangaço de Serra Talhada/PE, ainda dispõe dos seguintes títulos:
- Lampião. Nem Herói nem Bandido. A história. Anildomá Willans (R$ 30.00).
- O Sertão de Lampião. Alcino Costa (R$ 40,00).
- Lampião e Zé Saturnino, 16 Anos De Luta. José Alves Sobrinho (R$ 40,00).
- Lampião - A trajetória de um rei sem castelo. Paulo Moura (R$ 32,00).
- Lampião e o tenente João Bezerra. Paulo Britto (R$ 15,00).
- Serra Talhada 250 anos de história. Luiz Lorena (R$ 35,00).
- O duelo de Lampião e Dom Quixote, de Francisco Cunha (R$ 30,00).
- Um praça e a Volante.  Dalila Ferreira de Souza (R$ 20,00).
Obs : Livros novos, e valores de frete já estão incluso. Visitem nosso site: www.cabrasdelampiao.com.br


Saudações!
Cleonice Maria Dos Santos 
Fundação Cultural Cabras de Lampião
Ponto de Cultura Artes do Cangaço
Serra Talhada/ PE.

Sugestão:  Ivanildo Silveira
Colecionador/Sócio da SBEC

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Quem é a autoridade?

Lampião X Promotor de justiça Manoel Cândido 

O afastamento da 2 ª Companhia do 20° B. C., da Mata Grande/AL, proporcionou a Lampião a chance para agir livremente, sem receio de ser molestado. Os horizontes tornaram-se claros para o bandido que era medroso da farda verde-oliva, tinha medo do Exército como o diabo da cruz.

A presença da Companhia no Sertão, afastou os bandidos para outros Estados. Entretanto, assim que o Exército voltou para Maceió, os cangaceiros logo no início do ano de 1934, foram chegando para Alagoas, começando por "Corisco", que atravessou o rio São Francisco e passou a atuar nos municípios de Moxotó, Tacaratú, no Estado de Pernambuco, depois em Mata Grande/AL.

A polícia de Alagoas e de outros Estados passaram a persegui-los, mas em vista da facilidade de locomoção dos bandidos, nas caatingas de espinhos, tornava-se difícil a captura dos mesmos.

Seis meses de permanência do "Demonio Loiro" em Pernambuco e Alagoas, voltou Lampião da Bahia, trazendo Maria Bonita. O bandido ao chegar em Alagoas, dividiu seu pessoal em pequenos grupos que atuavam em pontos diferentes, dificultando, assim, a ação das policias.

Naqueles tempos as estradas de rodagem eram de uma precariedade nunca vista, especialmente em se tratando da Mata Grande às cidades fronteiriças de Pernambuco.

Quando havia a necessidade de viajar para Rio Branco, atual Arco Verde/PE, nos tempos das enchentes do rio Moxotó, as estradas tornavam-se intransitáveis. Os caminhões que transportavam algodão e cereais para os sertões de Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará e até para o Piauí, faziam o trajeto de "Negras", Pau-ferro, Santa Clara e Buique, passando um dia inteiro numa viagem intercalada de atoleiros, barro escorregadio e outros acidentes.

Numa dessas viagens entre Mata Grande, o caminhão de propriedade de Antonio de Amélia foi assaltado por Lampião que perambulava por ali.

Viajavam no veículo várias personalidades políticas da Mata Grande, como o coronel João Gomes Malta de Sá, Manoel Rodrigues de Carvalho (Né Rico), Dr. Manoel Cândido Carneiro da Silva, Promotor de Justiça. (Foto)

Esse bacharel além de ser um homem que se debatia pelas coisas boas e honestas, era possuidor de grande integridade moral. Nunca silenciou diante das arbitrariedades praticadas pelas policias, e falava escancaradamente doesse em quem doesse. Não havia muitos tempos que tinha escrito o livro "Factores do Cangaço", no qual fazia alusão às arbitrariedades e atrocidades praticadas pelos bandidos e também pelas volantes.

O bandido Lampião estava necessitando de provisões, mas não deixou de fazer a cata do dinheiro que os passageiros levavam, bem assim de jóias de uso pessoal. Ao meio daquela confusão e também apreensão, todos temiam serem mortos pelos cangaceiros, quando um dos passageiros gritou, na ocasião que estava sendo acossado pelo dinheiro:

— Dr. Manoel Cândido!

Lampião ao ouvir o nome, ficou surpreso e, virando-se rapidamente para o rapaz, perguntou ainda meio espantado:

— Você disse Dr. Manoel Candido? Então é o senhor o doutor Manoel Candido?

— Sim, Capitão.

O bandido era meio humorista, fazendo um arzinho de riso, pegou o doutor pelo braço e disse:

— Venha comigo, doutor!

Subiram e lá muito adiante, na ribeira de um riacho, onde existia uma árvore seca caída, apontando ordenou:

— Sente-se, doutor!

O promotor obedeceu prontamente às ordens do bandido que já estava com a cara alegre. Mostrando-se calmo, perguntou:

— Doutor, cadê o “Livro” que o senhor escreveu sobre Lampião? Está aí?

— Está, Capitão!

— Então, Doutor, o senhor vai lê-lo agorinha mesmo!

O bacharel, sentindo-se nervoso, abriu a bolsa que levava e deu início à leitura.

A tarefa seria muito dura e difícil porque havia trechos em que atacava danadamente os bandidos. O homem foi lendo... mas sempre prevenido para não cair no desagrado do "Rei do Cangaço".

Quando chegava em alguns trechos que atacavam os bandidos, o doutor saltava e alguns lia com cuidado e aos poucos ia omitindo algumas palavras contundentes, mas nos trechos que atacavam a polícia o doutor batia as palavras e Lampião divertia-se com o que ouvia a respeito dos "macacos".

Terminada a leitura, o bandido mostrava-se satisfeito, o bacharel saiu-se maravilhosamente bem. Todavia, ainda não estava terminada a entrevista, o facínora chamou o bandido Moita Brava e lhe cochichou ao ouvido alguma coisa, apontando para o doutor, gesto este que o deixou cismado e medroso, suspeitando que ia morrer. Entretanto, assim mesmo desconfiado, chegou-se à Maria Bonita e perguntou:

— Dona Maria Bonita, a senhora tem uma filhinha, não tem?

— Tenho, sim senhor! Por que?

— Porque eu também tenho uma filhinha que é o meu coração e a razão de meu viver. Assim, peço não deixar que Lampião me mate !

Maria Bonita mesmo sendo cangaceira, tinha bom coração, e ouvindo os rogos do Promotor de Justiça, que se achava em um estado de nervos de fazer pena, falou com Lampião e, voltando, disse:

— Dr. Manoel Cândido, pode ficar descansado que o senhor não vai morrer. O rapaz vai lhe fazer umas perguntas, mas não lhe fará nenhum mal.

O cangaceiro chamou o doutor, subiram o riacho e lá em cima fez-lhe algumas perguntas, talvez à busca de contradições. Enquanto Lampião observava e conversava com o prisioneiro, o resto do grupo saqueava os demais passageiros.

Antonio de Amélia, proprietário do caminhão, suspeitando ser reconhecido pelo fato de, algumas vezes, juntar-se à polícia em perseguição aos bandidos, tentou uma fuga, mas não conseguindo por ter sido interceptado por um cangaceiro que, apontando o fuzil para ele, não o matou porque a bala pinou.

Depois de quatro horas de verdadeira angústia, saíram-se muito bem pelo fato de não morrerem, mas…o "cobrinho" que levavam perderam, bem assim as joias e outros pertences. Né Rico, um dos prisioneiros que já sabia do fraco de Maria Bonita, que era falar da sua beleza, todos aqueles que aplicassem o adjetivo belo à sua pessoa, estariam salvos de qualquer sofrimento que porventura Lampião lhes quisesse impor .

Então, Né Rico possuído de grande calma, aproximou-se da bandida e sapecou-lhe o verbo:

— O povo tem razão em lhe chamar de Maria Bonita, porque eu estou encantado com a sua beleza! A senhora é bonita de verdade!

Usando os elogios acima, Né Rico nada sofreu dos bandidos, passou todo tempo ao lado daquela "beleza". Entretanto, não dispensaram o seu dinheirinho, deixaram-no tão liso como buraco de cobra!

* Texto transcrito da obra “ Lampião e Suas Façanhas” – Autor: Bezerra e Silva

Um abraço a todos
Ivanildo Silveira
Natal/RN

domingo, 22 de novembro de 2009

Mensagem do amigo Paulo Britto

Email este que nos chega como um "bom dia", nesta manhã de domingo

Prezado Kiko Monteiro,

Foi uma satisfação conhecê-lo no I Seminário Cariri Cangaço. Espero que nos encontremos mais vezes.
 

Tornei-me um assíduo leitor do "LAMPIÃO ACESO" nesta minha jornada de iniciante, em descobrir os mistérios do computador e da internet.
 

Parabéns pelo Blog. A matéria nossa que foi divulgada (folder de meu pai - Cel. João Bezerra) nele, muito nos satisfez.
 

Estaremos sempre à disposição.

Um abraço do amigo,
Paulo Britto


Prezado Paulo Britto, 
(eu vou dizendo na sequencia bem clichê) a recíproca é verdadeira visse?. 


Conhecer o amigo foi uma grata satisfação, uma em especial das várias proporcionadas pelo Seminário Cariri Cangaço. Momento esse que registrado em imagem ilustra esta matéria. À propósito, li suas impressões no Blog do evento, ainda bem que o amigo tomou sábia decisão, esperamos um breve reencontro, se possível antes do próximo Cariri, quem sabe por estas plagas sergipanas e com novidades literárias que o amigo venha a produzir. 

A vida do cel. João Bezerra é capítulo de suma importância na história do cangaço. Conhecemos as mais diversas opiniões, devemos convir o quanto essencial e importante quando seu filho, herdeiro de suas memórias e relatos as resguarda e as expõe com maestria, brindando assim aos amantes do cangaço. Nem precisamos acrescentar que o blog e enfim, nós, estamos ás ordens para com o amigo e vossa família. 


Extendo nosso abraço ao amigo Benner e esposa. 

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Entrevista com Frederico Pernambucano de Mello

Cangaço e o “Brasil profundo”
Por Marcel Bezerra 
marcel@editoraassare.com.br

Cangaço Sem lei nem rei, “Guerreiros do Sol” mais universais e irredentos do que nunca. 

Um desdobramento da reação nativa de corrente minoritária ao longo de cinco séculos. Um resultado da luta renitente contra os valores do colonizador, sua ideologia mercantilista e a escravidão da “raça castanha”.
Nessa entrevista, é assim que o fenômeno do cangaço começa a ser descrito e analisado, num resgate da profunda e brilhante leitura lançada em 1985 pelo historiador Frederico Pernambucano de Mello. Sucesso de edição esgotada há anos e raridade de alto preço nos sebos, a obra foi relançada em 2004. Aqui, o autor, entre outras abordagens, fundamenta como o cangaço, “no mais fundo da carne, foi uma tradição brasileira de resistência popular armada, contínua e metarracial”

NVU - Há similaridades do cangaço com outros fenômenos em outras partes do mundo, especialmente nos moldes da amplitude alcançada pela figura de Lampião?
FPM – Em essência, o fenômeno do cangaço é universal, correspondendo àquele período cinzento da transição privado-público na história dos países, de modo particular nos países de colonização tardia, nos quais se mostrou mais renitente. Mas, houve em todos os continentes, no instante em que o braço da administração da justiça criminal pública, começando timidamente a chamar a si os conflitos sociais, vai lançando na marginalidade as práticas e os agentes da violência privada, no afã de monopolizar a coerção. Saindo do abstrato, diríamos estar tratando, com referência ao Nordeste do Brasil, daquele momento dramático em que a figura histórica do valentão, instância privada de resolução de conflitos na ausência da justiça estatal, vai cedendo passo lentamente ao capitão-mor e ao juiz de paz, depois ao delegado, ao subdelegado, ao inspetor de quarteirão. E se transformando, sem o sentir, de justiceiro em criminoso. De figura socialmente exemplar a perseguido da justiça pública em ascensão. Não devemos deixar de assinalar que o caráter universal do cangaço, em sua essência, foi proclamado por Câmara Cascudo há muitos anos. Quanto à amplitude de espaço, de tempo, de engajamento de massa e de visibilidade pública alcançada por Lampião e seu bando, não há rival nos tempos modernos, sobretudo no Ocidente.

NVU – Qual o contexto histórico do Nordeste no período pré surgimento do cangaço?
FPM – Diferentemente do que pensam muitos autores ilustres, que costumam datar do meado do século XIX o início da existência do cangaço no sertão — como se fosse um cometa surgido do infinito — o fenômeno é velho de cinco séculos. E não tem no sertão o seu berço. Há até quem crave um ano, tirado não se sabe de onde: 1870. O que o meado do Novecentos fez despontar, a partir do aumento da população do interior,
foi a percepção daquela vida de aventuras pela opinião pública do litoral, na ocasião em que esta começava a
cogitar sobre a presença de um lugar longínquo a que se dava o nome de sertão, onde, além da violência, havia a seca, como fenômeno natural recorrente, e uma poesia popular, cantada e escrita, que aliava à arte o sentido precioso da documentação dos fatos. Em Pernambuco, o donatário da Capitania, Duarte Coelho, queixava-se à Coroa das correrias de bandos de salteadores que “anarquizavam” os primórdios do empreendimento litorâneo do açúcar, nossa primeira economia não apenas de exportação, mas de transformação, ainda no meado do século XVI. Esse é o momento em que surge e vai-se afirmando, contra
as exatidões da ideologia mercantilista brandida a ferro e fogo pelo colonizador europeu — e contra, sobretudo, a escravização das raças castanhas que implicava — o mito primordial de que seria possível viver-se, nesta parte do Novo Mundo, sem lei nem rei e alcançar a felicidade.

NVU – E em que aspectos e proporção o mito se estabeleceu nesse Novo Mundo?
FPM – Esse mito inspirou e deu vida a uma corrente minoritária de nativos e de adventícios que não se dobraria aos valores coloniais e se manteria irredenta, exprimindo-se através da atitude daqueles grupos sociais que não aceitaram fraternizar com os valores europeus de civilização. Nada de acumulação, nada de propriedade privada, nada do primado dos metais nobres, do tempo linear, da pontualidade, do comércio, da subjugação religiosa. Nada, enfim, daqueles cabrestos que recheavam o Mercantilismo pré-capitalista como ideologia dominante no Mundo Ocidental nos séculos XV e XVI, contrabandeados para a Terra dos Papagaios pelas concepções culturais portuguesas do Quinhentismo  e do Seiscentismo. A essa gama de novidades, reagiam por trás de individualismo elegante, expresso na frase que permeia boa parte dos documentos reinóis do século do Descobrimento, escrita por quem observava os modos dos habitantes da terra recém-devassada: eles vivem sem lei nem rei e são felizes. Foi assim que o europeu que aqui aportava, atolando o pé na carne opulenta de índias receptivas – segundo salientou Gilberto Freyre em sua linguagem plástica – retratou o nativo que estava encontrando. E quedou siderado no instante seguinte, acusando o impacto que tanta liberdade produzia sobre a alma de quem velejava vergado ao cambão de braúna da Coroa portuguesa e do Papado de Roma. Um Papado de fogueira acesa, com a chama da Santa Inquisição. E uma Coroa absolutista, a despachar para as masmorras do Limoeiro a quantos tropeçassem nas cavilações penais do Livro Quinto das Ordenações Manuelinas.

NVU – O que foi o cangaço, finalmente?
FPM – Em seu sentido profundo, ele é a expressão de irredentismo que falta agregar à historiografia brasileira dos cinco séculos de colonização. Uma historiografia de longa data, sensível às recorrências irmãs desse irredentismo de chapéu de couro, representadas pela intermitência plural do levante indígena, de que é exemplo maior a chamada Guerra dos Bárbaros; do quilombo predominantemente negro, à frente Palmares, e da revolta social branca ou mestiça, encabeçada por Canudos. Não é o cangaço, na visão moderna que temos proposto, fenômeno surgido do nada, solto no tempo e no espaço, como se pensou até ontem, mas parte – e parte tão ilustre quanto as demais – do desvio de fogo que correu parelhas com o leito central de nossa história, o de expressão majoritária, a impor, este último, os valores reinóis, no instante em que o índio e o negro baixaram finalmente a cabeça à subjugação pelo branco europeu. Não todos. Os que reagiram, agremiados na corrente minoritária, deram vida a um irredentismo militante que é a raiz comum de todas as insurgências vistas acima, sublimado, com o passar do tempo, numa tradição brasileira.

Uma tradição guerreira de resistência popular. Deve ser notado que, enquanto o levante indígena, o quilombo e a revolta social possuíam caráter intermitente e uma identidade étnica definida pela predominância do contingente racial que recheava suas fileiras, o cangaço mostrou-se contínuo no tempo e absolutamente metarracial. Você podia ter sucesso no bando, ascendendo à chefia, fosse branco alourado, como Corisco; negro, como Zé Baiano; índio, como Gato; ou mestiço dos mais diferentes matizes, como o caboclo Lampião, o mulato Sabino, o sarará Luiz Pedro, o cafuzo Jararaca, o caboverde Zé Sereno. Sem deixar de ser uma expressão de banditismo — porque sempre houve lei capaz de respaldar esse enquadramento jurídico de epiderme — o cangaço, no mais fundo da carne, foi uma tradição brasileira de resistência popular armada,
contínua e metarracial.

NVU – Por que o cangaço é sempre ligado ao sertão?
FPM – O cangaço nasce no litoral e vai sendo enxotado para o sertão pelo sucesso do empreendimento econômico na zona costeira. Houve cangaço no verde e no cinzento, como mostramos em nosso livro Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil (São Paulo, A Girafa Editora, 2004, 2ª ed.). Com pontos em comum e pontos discrepantes, naturalmente. O cangaço no verde foi mais sedentário que o do sertão, por exemplo. De maneira que não se trata de fenômeno sertanejo na origem, como vimos não ser uma singularidade brasileira. A colonização no semi-árido inicia-se na segunda metade do século XVII, com
as doações de terra pela Coroa portuguesa, e não se faz sem muito sangue. O choque entre o branco invasor e o índio resistente foi tremendo.

NVU – Que tipo de gente protagonizava esse conflito?
FPM – Entre os primeiros, ao lado da gente áspera vinda da vila de São Paulo, os chamados bandeirantes, e dos não menos rijos vaqueiros das casas senhoriais da Torre e da Ponte, partidos de Salvador, encontravam-se, por exemplo, os soldados da guerra de quase trinta anos movida contra os neerlandeses a partir de Pernambuco, um exército luso-brasileiro de cerca de três mil homens, adestrado no emprego das armas brancas e de fogo, desempregado pela capitulação de 1654. Gente toda ela violenta, afeiçoada ao sangue. Ao aço frio. À pólvora. Pelo lado do índio, vale lembrar que o choque se dá, não com o tupi litorâneo, conhecido pela cordialidade, mas com as várias nações do ramo tapuia, conhecido pela ferocidade. Ao assentamento dos currais de gado no sertão, corresponde um banho de sangue. E à dizimação de um gentio que estava na escala mais baixa das formulações doutrinárias do colonizador, à frente o religioso José de Acosta, um erudito da Companhia de Jesus.

Até o padre Antônio Vieira, de sua experiência de penetração do Brasil, asseverava a impossibilidade da catequese de canibais hostis, armados de flechas envenenadas, invisíveis na vegetação cúmplice. Será ali que o cangaço irá apropriar e desenvolver essa tradição de guerra brotada da intuição do caçador, recebendo o estímulo de um relevo propenso à ocultação e de uma vegetação toda feita de espinhos, como que trançada a capricho para barrar a presença do litorâneo. Paga com o nome pelo qual o fenômeno ficaria imortalizado: cangaço. Que é voz sertaneja, como proclamava o cearense Juvenal Galeno já em 1871. Por tudo isso, não é de estranhar que o cangaço tenha-se desenvolvido no sertão de maneira extraordinária, a ponto de evoluir de endêmico a epidêmico em alguns períodos. É assim que a caatinga passa a ser o palco por excelência das correrias dos capitães chefes de bando.

NVU – Em que patamar a “distribuição gratuita de marxismo simplificado” pelo meio acadêmico embotou a consciência sobre o fenômeno do cangaço?
FPM – O marxismo prêt-à-porter desenvolvido no Brasil permitiu que muita gente deitasse falação sobre o cangaço, sobretudo no meio acadêmico do Sudeste, sem nem mesmo sentir a necessidade de conhecer o Brasil setentrional e o sertão. Ou de sujar-se na poeira de arquivos. Para armar o esquema da luta de classes, que tudo explicava em seu suficientismo orgulhoso, bastava caracterizar-se o coronel como opressor e o cangaceiro como oprimido. Pronto. Para que mais? Para que queimar as alpercatas em Quixeramobim ou nas Lavras da Mangabeira?

Acontece que Lampião – e vamos pegar logo o exemplo mais emblemático – era o queridinho dos coronéis de barranco, gostando de estar entre estes e combatendo apenas aqueles que se erguessem contra a sua violência meticulosamente organizada. Empresarialmente organizada. Essa era a regra, não sendo raro que as duas figuras se associassem nas empreitadas rentáveis da rapina. E até na agiotagem posterior. Foi assim com os chefes de grupo em geral. Mas isso desmontava a barraca marxista e não podia ser aceito. Historiadores ilustres, como José Honório Rodrigues, no Rio de Janeiro, e menos ilustres, como a paulista Cristina Mata Machado, embarcaram nessa canoa furada.

E brilharam por muito tempo em livros e na sala de aula. Até que a voga marxista começasse a ser varrida lentamente, a partir dos anos 70 do século passado, quando a história volta a se assumir como ciência ideográfica, ocupada com o específico e o não-repetível, e dá as costas para as constantes nomotéticas geradoras de estruturas generalizantes, com o perdão do leitor pelos nomes pesados.

NVU – Então, como “desembotar” essa consciência do conflito de viés puramente ideológico?
FPM – Na história do Nordeste, a dinâmica de conflito por excelência residiu sempre no divórcio litoral-sertão. Aí é que estão as placas tectônicas dos vulcões sociais que nos sacudiram de modo recorrente, fruto da falha no desdobramento do processo colonial. Da decadência precoce da colonização sertaneja, geradora do isolamento da caatinga e do que já chamamos em livro de mumificação dos costumes sertanejos, vis-à-vis da renovação que se produzia no litoral, aberto à via marítima. Isso vem até os nossos dias, ultrapassando o paroxismo de Canudos, na Bahia de 1897, e invadindo o século XX. É ver o Caldeirão, em 1936, no sul do Ceará, ou a também teocracia do Pau-de-Colher, de 1938, novamente na Bahia. O litorâneo não se via no sertanejo e vice-versa. Consideravam- se estrangeiros, quando postos um em face do outro, como se viu, dolorosamente, em Canudos. Mostramos isso, detidamente, em nosso livro A guerra total de Canudos (São Paulo, A Girafa Editora, 2007, 2ª ed.) No sertão, coronéis e cangaceiros entendiam-se a seu modo. E como se entendiam...

NVU – O senhor identifica diferentes tipos de cangaço. Quais as características mais marcantes de cada um?
FPM – No Guerreiros do sol, mostramos que houve grupos que fizeram do cangaço predominantemente
um meio de vida, como no caso de Lampião ou de Antônio Silvino. E outros, que dele se valeram como instrumento de vingança, geralmente num contexto de luta entre famílias, como se deu com Sinhô Pereira e Luiz Padre, de um lado, e Sindário, do outro, na guerra privada entre Pereiras e Carvalhos. Ou com Jesuíno Brilhante, na guerra contra a família Limão, encabeçada por um cangaceiro não menos valente: Honorato Limão. Outros, ainda, o transformaram em asilo nômade de criminosos jurados de morte, como Ângelo Roque, o Labareda. A cada propósito correspondendo um estilo de vida, uma contenção de gestos e até uma dimensão de espaço e de tempo. Os primeiros mostrando-se mais longevos e de abrangência geográfica mais espalhada, chegando a atingir quatro Estados, como aconteceu com o bando de Lampião, e varando os vinte anos de sobrevivência. Uma tradição presta-se a muitos propósitos, não é?

NVU – Por que Lampião acabou sendo a figura de maior relevo nesses domínios?
FPM – O cangaço de Lampião – reinado derradeiro numa sucessão de “realezas” que caracteriza o desdobramento do fenômeno ao longo de séculos – marchando para se confundir com o próprio conceito, não foi senão o canto de cisne dessa vertente contínua, minoritária e metarracial em nossa história, sem que se esteja a amesquinhar o diferencial de volume, organização e requintes estratégico e tático presente nos mais de vinte anos de império daquele que seria chamado pela imprensa, ainda em vida, de Rei do Cangaço, Tigre do Sertão e Terror do Nordeste, à base do talento pessoal, do raciocínio fulgurante e do engajamento de massa que logrou atingir. Há ocasos portentosos. Lampião nos põe diante de um.

NVU – Qual a influência de Gilberto Freyre em sua obra?
FPM – Muito grande. Integramos sua equipe de trabalho por quinze anos, cumprindo aquilo que o professor
Nelson Aguilar, de São Paulo, caracterizou um dia como o mais longo doutorado já feito por um cristão.
Estava certo. Trabalhar com Gilberto era aprender a cada minuto uma lição. Graças a ele, demo-nos conta de que a história deve ir muito além do fato saliente na política e do registro de fatos objetivos. Que deve alongar-se num romance verdadeiro, incorporando o dia-a-dia, o ordinário, o cotidiano, o aparentemente banal, o universo íntimo. Nisso, ele se antecipou a Braudel, a Lefèbvre, a Bartes, a Bastide, a Abelès, a Ginzburg. A Escola dos Anais, consagrada na França de 1930, proclamou o pioneirismo desse ilustre brasileiro do Nordeste. Ele antecipou o ganho que a história recebeu modernamente ao incorporar, com humildade digna de louvor, umas tantas lições da antropologia. Boas lições.

NVU – Onde evidenciamos tal influência em seu trabalho?
FPM – Está no perfil que traçamos de Lampião, revelador de que o guerreiro insuperável, o homem de violência indiscutível, qualidades conhecidas no passado, era, ao mesmo tempo, um costureiro exímio, em pano e em couro, além de bordador caprichoso.

Um sujeito preocupado surpreendentemente com questões de representação simbólica no traje e no equipamento de seu grupo, e com a alimentação dos mídia sobre os passos de seu bando. Que apreciava, incorporando o requinte de coronéis fidalgos com os quais privou, à frente Hercílio de Brito, de Propriá, Sergipe, o perfume francês e o uísque da Escócia. Que possuía cartões de visita e postal com a própria foto no anverso já em 1936, confeccionados na Aba-Film, de Fortaleza, para evitar falsificações em sua correspondência surpreendentemente ativa. Quando mostramos isso em livro, nos anos 80 do século passado, quase que o mundo desaba sobre nossa cabeça. A menor acusação era de que estávamos efeminando o Rei do Cangaço.

Hoje, não há quem ignore ou conteste que Lampião possuía dores artísticas. Ao contrário. Há livros recentes, escritos aqui e lá fora, para desenvolver essas revelações, o que nos envaidece. É o salário moral de quem pesquisa. De quem come poeira e arranha os cotovelos sobre as fontes de primeira mão. O espaço de rebeldia do assistente ficou por conta da escolha do sertão como tema de estudos. Gilberto Freyre não gostava do sertão. Algumas vezes nos abordou com a ciumeira:
“Você anda conversando muito com Ariano Suassuna!”
Mas não se privou de reconhecer a seriedade dos estudos que empreendíamos, prefaciando nosso livro de estréia e cravando na imprensa estar diante de um “mestre de mestres em assuntos de cangaço”. Está lá, no Diário de Pernambuco de 28 de fevereiro de 1985. É muito bom para o aluno constatar que não decepcionou o professor.

Quem é esse pernambucano embrenhado num “Brasil profundo”?

Frederico Pernambucano de Mello é pesquisador de história social da Fundação Joaquim Nabuco, Recife, cidade em que nasceu no ano de 1947. Tem formação ainda em Direito e se aposentou como Procurador Federal.

É membro da Academia Pernambucana de Letras, onde ocupa a cadeira 36 desde
o ano de 1988. Na fundação, integrou a equipe do sociólogo Gilberto Freyre, de 1972 a 1987,
período em que se especializou, sob a orientação deste, no estudo da História Social do Nordeste do Brasil, especialmente em seus aspectos de conflito.

Pela originalidade dos estudos, volume da obra que produziu e por se dedicar a aspectos históricos tidos como ásperos e de pesquisa difícil ou penosa, tem sido considerado, sobretudo no meio acadêmico paulista, o "historiador do Brasil profundo".

Na especialidade, publicou ainda A tragédia dos blindados (1991); Quem foi Lampião (1993);
A Guerra total de Canudos (1997) e Delmiro Gouveia (1998). Tem, no prelo, o livro Estrelas de couro: a estética do cangaço, resultado de estudo profundo a que se dedicou desde o ano de 1997. O maior sucesso foi mesmo Guerreiros do Sol, o mais profundo e completo estudo sobre o fenômeno do cangaço no Nordeste.

Sua pesquisa o torna o maior especialista no assunto, reconhecido tanto aqui quanto no exterior. Ariano Suassuna define assim a obra do autor:  
Sem sombra de dúvida, a teoria do escudo ético de Frederico Pernambucano foi a única que, até o dia de hoje, me pareceu convincente. Foi a única que explicou a mim próprio os sentimentos contraditórios de admiração e repulsa que sinto diante dos cangaceiros”.
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Publicada na Edição Nº 01 — Ano I — 30 Maio /2009 — da Revista Nordeste VinteUm. O nosso exemplar que foi uma cortesia do amigo jornalista Barros Alves para todos os participantes do Cariri cangaço.  Baixe todo o conteúdo da mesma em PDF: Clique aqui

Att. Kiko Monteiro